Humanidade é o quê?

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O que é humanidade? Ser humano é bicho, e nenhum nome composto nos exime desta posição. Essa droga de sociedade e espírito de equipe só serve para Jogos Olímpicos e campanhas da fraternidade organizadas por senhoras, se tanto. Falamos das massas, da grande multidão gloriosa que ajuda um único integrante a se levantar e superar suas dificuldades — mas nos esquecemos que fazemos parte dessa massa e reprovamos o morador de rua com o olhar todos os dias ao caminhar para o trabalho, enquanto desprezamos secretamente o chefe que se afasta por ter depressão.

A humanidade não estava lá para mim quando quebrei.

Sempre me orgulhei de nunca ter quebrado. Já havia me vergado, me submetido, realizado a vontade alheia e me eximido de culpas realmente minhas. Como o bambu, eu pensava, sempre em grupos grandes, o qual se verga sob o vento, mas nunca quebra. Mesmo em meio à multidão, eu quebrei, e quem lutava contra o vento não se abaixou para me ajudar.

Falando dessa maneira pareço a mais amarga das mulheres — sim, não sou uma adolescente revoltada com a vida, tingindo o cabelo de preto e alargando as orelhas. Prazer, sou Amarga Julieta.

***

Tudo bem, só Julieta. Vamos começar a contar minha história, antes que eu me arrependa.

É esperado que um grupo de apoio preste ajuda e dê conforto enquanto analisa seus problemas e toma chá com biscoitinhos, certo? Também pensei assim quando meu ex-marido e seu melhor amigo faleceram em um acidente de carro e me indicaram um grupo de apoio sem vínculos religiosos. Melhor assim, concluí; ninguém tentaria me converter com orações das quais eu jamais seria capaz de lembrar e cultos os quais não gostaria de frequentar.

Quando cheguei à sala iluminada, cadeiras de plástico sobre o piso frio e uma mesa com refrigerante e biscoitos a um canto, esperava pena dissimulada e um "tudo ficará bem" dito com falsidade. Ao chegar minha vez, porém, contando sobre o acidente — Julieta ama o marido. Julieta se separa do marido, ainda o amando. Julieta perde o agora ex-marido e um amigo que tinha se tornado seu também — só ouvi uma pergunta indiscreta, e me inclinei para a frente, procurando ouvir melhor. Era aquilo mesmo.

— Quantas tentativas, Julieta?

— Tentativas de quê? — desconfortável, reparei nas duas únicas pessoas do recinto na minha faixa etária; a orientadora e um outro homem de expressão sofrida e gaze nos pulsos.

— De suicídio, querida. Automutilação, atos violentos. Não precisa ter vergonha, todos nós já passamos por isso — explicou a orientadora, com o mesmo sorriso apaziguador no rosto.

— Não sou suicida! — exclamei, notando vários rostos juvenis frustrados se virando em minha direção — Sofri duas grandes perdas e só estou muito triste, por isso vim até aqui hoje.

— Meu bem, é normal negar, mas está tudo bem, todos aqui te entendemos. Se você não estiver pronta para falar sobre isso, podemos tentar de novo na semana que vem.

***

Eu nunca tentei suicídio. Não cortei meus pulsos com uma lâmina furtada e sempre me senti meio idiota ao pensar em morrer por morrer. Essas coisas, porém, pareciam banais em excesso para aqueles adolescentes deprimidos e o homem com gaze nos pulsos. Ofereceram número de telefone, grupo de apoio no facebook, passeios no parque e conselhos não pedidos. Um deles, para o meu espanto, possuía o número 141 tatuado na parte interna do pulso, o disque Valorização da Vida.

Estava eu no lugar errado?

Ode À HumanidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora