Sua fuga do nosso mundo paralelo

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Depois de se soltar do meu abraço, você me disse com aquela determinação que só você tem, mesmo depois de uma garrafa de vinho: "Não tô indo embora. Eu tô fugindo". Aquele caminho da porta de vidro do prédio até a calçada, que faço todo dia em cinco segundos, nunca foi tão longo. O táxi estava te esperando na rua. Devia ter mandado o motorista embora. Devia ter te puxado de volta. Devia ter te dado um beijo. Talvez aí você tivesse um motivo ainda mais concreto para fugir. Mas não. Fiquei parado enquanto você ia para casa. Seu namorado estava ligando, você não queria mentir para ele e a gente tem toda essa nossa história enrolada. Enrolada demais, alguém poderia dizer. Não sei se você queria ir embora mesmo. Talvez por isso a frase de despedida tenha sido: "Eu tô fugindo." Palavras que entraram na minha cabeça e ficaram lá, como música ruim. Não era a primeira fuga nesses quase dez anos de desencontros.

A gente não se via há quanto tempo mesmo? Um ano, mais ou menos. Dois anos, se não contar aquele dia em que passei no seu trabalho para conhecer o escritório novo e te dar um oi. Lembra disso? Eu estava de folga, tinha marcado um café com um amigo lá perto e fui te ver. Foi nesse dia que fiz piada com suas bochechas - aquela que você faz questão de contar sempre, embora claramente não tenha gostado. Não sei como você consegue fazer uma conversa banal chegar nas suas bochechas. Você é capaz de levar qualquer assunto para onde você quer. E eu caio, às vezes até de propósito. Faço o contrário com você também. É como se fosse um jogo nosso, uma provocação controlada. Mais uma das incríveis características próprias do nosso mundo. Que universo particular sobrevive sem suas peculiaridades?

Aquela noite que você veio em casa nosso mundo estava especialmente único. Vinho, música, risadas. Dá para medir o quanto se gosta de alguém pela intensidade das risadas, não dá? Nem parecia que já fazia um ano que a gente não se encontrava. Claro que nesse meio tempo teve uma infinidade de whatsapps, alguns telefonemas, uma ou outra conversa mais longa. Mas não é a mesma coisa sem olhar nos seus olhos, ver suas reações, o jeito como mexe no cabelo, a forma como o sapato estava te incomodando - e mesmo assim você não o tirou -, a marquinha que o acidente deixou perto do seu ombro esquerdo. Lembro muito bem do dia que você me contou que bateu o carro e mandou a foto para eu ver o estrago. Que arregaço. Aí teve uma hora que a gente abriu a janela para fumar e veio um vento gelado. Foi quando você pegou meu casaco e vestiu. Pela janela, o mundo acontecia lá fora de tantas formas diferentes, enquanto na sala o tempo tinha parado para ver o que a gente faria com ele.

De repente, lá estava você, sentada na minha frente, tentando me convencer que comprar um apartamento junto com seu namorado não era um sinal de comprometimento sério. Como não? "É um investimento", você disse. "Posso vender minha parte a hora que quiser". Você sabe que não é bem assim. Eu quis acreditar em você, por conveniência. Já cogitei comprar um apê com um amigo. Mesmo assim, seria um baita compromisso. E era um amigo, eu não ia terminar com o cara um dia, não ia descobrir uma traição dele, sei lá. Não sabia que seu namoro estava assim tão sério. Comprar um apartamento? Uau, é uma dose muito grande de vida adulta isso. Essa história foi um meteoro caindo no nosso mundo. Me pareceu que isso te deixou meio tensa. Não sei se você se vê nesse apartamento, mas tenho certeza que não quero te ver lá. Precisei ir no banheiro jogar uma água no rosto. Acusei o golpe.

Para deixar as coisas um pouco mais iguais você perguntou sobre a menina com quem eu estava saindo. "Nada de mais", respondi reticente. Não duraria mais duas semanas.

O tempo não parou, como eu queria, e você teve que ir embora. É aquela história de acabar rápido o que é bom. Você tinha sua vida fora da minha sala, longe do vinho, das músicas e das risadas, além do nosso mundo. 

E, então, lá estamos nós, abraçados na frente da porta de vidro do prédio. Palpitação, o alerta na cabeça de que está rolando um clima. Não sei se devo ou não tentar te beijar. A essa altura a vontade fica tão explícita que encostar nos seus lábios seria uma mera formalidade. Não dá mais para adiar o inevitável. Você sabe disso. "O táxi chegou". E pronto! Você foge. Na semana seguinte vi uma foto sua com seu namorado no Facebook. Quis acreditar que você não parecia tão feliz. Foi o que contei pra mim mesmo, e é assim que essa memória vai ficar na minha cabeça.

E lá se foi nosso universo paralelo para segundo plano. Mais uma vez.

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⏰ Última atualização: Sep 14, 2016 ⏰

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