Segundo Conto

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Acordei numa manhã com meu celular tocando, reconheço o número, atendo, mãe da P., penso no quanto é estranho aquilo, a mãe dela nunca mais ligou desde que me afastei de sua filha e então ela diz, com voz triste, deu para perceber o quanto era difícil pronunciar as palavras que poderiam me destruir, P. estava morta, se matou no banheiro da escola, corte nos pulsos, sem alimento algum em seu corpo, e talvez aquilo fosse minha culpa, não percebi os sinais, ela andava pálida mesmo, tinha voltado a usar casacos sempre, mas eu não conseguia me sentir culpada, era como se tudo dentro de mim não existisse mais, eu estava oca, sem sentimentos, lágrimas desciam pelo meu rosto e pingavam no elogio fúnebre que eu estava a escrever para ela, sua mãe havia me pedido e eu não poderia negar.
Mandei uma mensagem pro A., talvez ele conseguisse fazer algo, eu estava começando a me desesperar uma hora depois de ter recebido a notícia, comecei a me desesperar quando aquilo estava no jornal mostrando uma foto dela e nem era uma de suas preferidas, aquilo me dava enjôo, ninguém a conhecia, mas todos estavam de luto por ela, eu e A. talvez fôssemos os únicos que a conheciam, ao menos a gente achava, eu era sua melhor amiga, mas P. era um mistério para todos.

Conheci aquele mistério na escola, sempre com seu próprio estilo, não existia alguém igual, ela era do estilo mandona e nerd, sempre dona da razão e ninguém conseguia argumentar melhor que ela, de início não gostei nenhum pouco desse mistério e acho que ninguém conseguia gostar dela, talvez tivessem medo, confesso que eu tive um pouco, ela chegava com seu sarcasmo e palavras bonitas, mesmo que fosse encantador, eu não conseguia gostar e então tivemos que fazer um trabalho juntas, odiei a ideia, ela sorriu quando o professor disse, ela deu aquele tipo de sorriso que os loucos dão quando vão entrar em mais uma de suas loucuras, não gostei daquele sorriso, mas quando o dia chegou, eu vi que ela não era exatamente o que todos achavam, aquela era a máscara dela e para mim ela se mostrou sem máscara e eu gostei daquilo, virou um vício vê-la todos os dias, sair para as festas com ela, P. me apresentou um mundo novo do qual eu não gostava, eu amava,mudei meu estilo de roupas, minhas amizades, foi como um total recomeço para mim, tudo era tão divertido, inclusive o melhor amigo dela, A., mas eu tinha medo, "as oportunidades devem ser aproveitadas" dizia ela, e ela aproveitava, fazia o que lhe desse na telha, era uma vadia louca inconsequente do caralho, mas essa vadia era minha melhor amiga e foi minha melhor amiga por bastante tempo, mas a depressão dela foi demais pra mim, não sabia lidar com aquilo e precisei me afastar, acho que todos se afastaram dela, os surtos davam medo, só quem tentou continuar com ela sempre foi A., mas ele também se afastou dela, P. era uma bomba relógio prestes a explodir e ela explodiu.
Mesmo que ela fosse o maior mistério do mundo todos sabiam do que seria capaz, mas ninguém conseguia admitir.

Seu funeral chegou, todos demos adeus e li meu elogio fúnebre que sinceramente ficou uma merda, eu nem a conhecia mais, eu a via nas festas e não sabia mais quem era, escrever sobre ela só porque está morta não é certo, ainda mais quando eu nem me preocupava com ela, todos ficaram arrasados e eu fingia tristeza, eu estava sofrendo, mas não conseguia admitir, todas as noites lágrimas rolavam pelos meus olhos ao ver nossas fotos nas paredes de meu quarto, mas eu sofria por quem eu tinha conhecido, não por aquela garota que se tornou uma estranha para todos.

Passaram-se alguns meses, todos estavam voltando ao normal, até tínhamos marcado uma festa, todos foram, até A. que tinha se trancado no quarto durante dois meses e nessa festa fiquei louca, uma incrível mistura de tequila, vodca, whisky e eu não lembro mais o que, queria ficar inconsciente e foi o que aconteceu, desmaiei, quando acordei já em casa meio grogue, vi uma menina, cabelos longos vermelhos, vestido colado vermelho, era ela? Essa ideia absurda ficou em minha mente.
- Volte a dormir, S., tudo vai ficar bem e eu não estive aqui.

Aquele fantasma escroto disse sorrindo e eu acreditei, cai no sono e sonhei com tudo o que eu queria e o fantasma não estava em meus sonhos.
Tudo estava tão estranho, eu não pensava muito no fantasma, mas algumas coisas me faziam lembrar dele, um certo cheiro de cigarro no meu quarto, uma pulseira perdida que não era minha, ignorei tudo isso, quatro meses se passaram, outra festa, um acidente de carro, quebrei minha perna, enquanto eu estava internada, um pouco dopada por causa dos remédios, aquele fantasma veio me visitar.
- Não sabe fazer nada sem mim, não é mesmo? Já já eu estou voltando, se prepare.
Com um sorriso irônico ela saiu do meu quarto no hospital, estava radiante, vestido vermelho, salto, brincos de argola, boa maquiagem, fiquei com a imagem dela saindo de lá na cabeça até que dormi e acordei sem saber se era um sonho e novamente um leve cheiro de cigarro, ignorei. Sai do hospital, passaram três meses, o fantasma me visitou, mas eu quem falei.
- Você não tem direito de fazer isso, aparecer e desaparecer quando tiver vontade, todos precisam de você, eu preciso de você.
- Não se engane, minha tola. Quando parti você nem sequer se importava mais e eu continuei cuidando de ti como se fosse um bem precioso, fiz tudo por você, me arrisquei indo cuidar de você no hospital ou quando você deu PT, cuidei de você do jeito que pude, mesmo que de longe, você esqueceu o valor da nossa amizade, você esqueceu o amor que tinha entre a gente, mas eu não. Estarei em breve voltando, as coisas serão diferentes.
-Não volte!
Se ela voltasse tudo mudaria realmente, o mundo ia ficar desequilibrado, todos iam querer saber dela, iam querer saber que história ela tinha para contar e cá entre nós, ela amava histórias, a pegava escrevendo várias coisas sem nexo que ela juntava e formava algo belo, uma escrita ótima, ela realmente poderia se gabar por sua escrita.
Ela não era mais minha melhor amiga e fazia um tempo, estávamos tão grudadas uma na outra que parei de viver por mim e fiquei vivendo por aquela amizade, P. não, ela vivia só por si, passaria por cima de qualquer coisa ou pessoa pra conseguir o que queria, eu desejava ser como ela, todos desejavam, mesmo com medo todos queriam ser um pouco daquela menina saída dos livros de 70 e ela falava e tentava me ensinar a ser como ela, "pense mais em si", "vai lá e faz se tiver vontade", aprendi que só vivemos uma vez e que deveríamos viver de verdade, decidi seguir seu conselho, mas segui em péssima hora, fiz algo que destruiu ela, foi uma barra pesada de início, mas conseguimos superar, voltamos ao grude, mas não era mais a mesma coisa, nunca seria novamente igual e nunca mais foi, a distância se tornou inevitável, um beijo de oi e outro de tchau nas festas, depois só uma olhada, depois eu a via dançando com suas novas amigas e não chegava perto, falávamos pra todos que ainda éramos melhores amigas, mas nem sequer a gente se olhava mais.
E ela novamente partiu, eu pensei estar enlouquecendo, ela não poderia estar nos manipulando como sempre fez, ela tinha mudado, ela realmente aparentava ter mudado ou talvez não, talvez fosse só mais uma máscara das milhares que ela usava para brincar, suicídio é coisa da antiga P., brincar com seus amigos é coisa da antiga P., ser o centro das atenções é coisa da antiga P., antes dela morrer, se é que está morta, ela tinha mudado, ainda continuava louca e inconsequente, mas tinha mudado, não precisava mais dos outros pra fazer seu império, mas mesmo que ela tivesse mudado, as vozes ainda a assombravam, queria conversar com A., falar o que tava acontecendo, contar das visitas, mas eu não poderia, seu sorriso finalmente tinha voltado, seu ânimo pras festas também, eu não iria estragar a vida dele lhe dando falsas esperanças de que seu grande amor estava vivo só por causa de uma alucinação qualquer da minha mente não tão sã, fiquei pensando e esperando por mais alguma visita durante meses, o máximo que vi como um sinal foi um bilhete, deixado todo amassado dentro da minha mochila.
"Eu disse que estou voltando."
Reconheci aquela letra e o medo tomou conta de mim.

Era ela?Onde histórias criam vida. Descubra agora