Já sentiu como se vivesse sufocado? Como se, de alguma maneira, a sua vida fosse completamente errada e que, em algum lugar, há algo maior e melhor?
Me sinto assim o tempo todo. E por um tempo, esperava que sair da casa dos meus pais, de seus cuidados exagerados faria com que eu me sentisse melhor, Mas estava enganada.
A verdade é que às vezes acho que o que desejo não existe, que de certa forma, meu sonho é viver em um mundo de fantasia. Talvez eu não pense que sou completamente louca por me sentir dessa maneira porque minha irmã gêmea passa pelas mesmas coisas e tem as mesmas sensações que eu. Não sabemos exatamente como agir em relação ao mundo e ao que esperam de nós. Enquanto eu vivo pelos livros, Lola só pensa em se divertir e "viver intensamente", como ela sempre diz.
Eu me chamo Evangeline e minha irmã, Dolores. Nossos pais, apaixonados por literatura decidiram homenagear alguns de seus livros favoritos através de suas filhas para a alegria de seus melhores amigos, nossos pais de criação, que são doutores em literatura.
O meu nome vem de um livro de 1937 chamado O Diário de Evangeline, e um dos exemplares da chamada Biblioteca das Moças, enquanto Lola, não preciso dizer que é por causa do livro Lolita, do Nabokov, não é mesmo? Não somos as maiores fãs dos nossos nomes, mas é a herança de nossos pais, então não podemos fazer muito em relação a isso, apenas pedir que todos nos chamem de Evie e Lola.
De toda forma, apesar de nos darmos bem com nosso pais, tanto eu como minha irmã sempre ansiamos por sair de casa. Papai e mamãe nos criaram com cuidado em excesso, praticamente nos enlouquecendo assim que começamos a caminhar com nossas próprias pernas. Quando chegamos na adolescência, passamos a conversar constantemente com eles sobre uma possível vida onde Lola e eu tivéssemos a chance da morarmos sozinhas, mas eles sempre foram contra e bateram o pé, dizendo que era apenas mais um capricho de adolescente. Acredite, não é.
No entanto, eles acabaram nos surpreendendo completamente, quando mesmo antes de completarmos 18 anos, nos presentearam com uma chave. A chave do nosso próprio apartamento. Mas junto com ela, vieram os sermões e as promessas: nós deveríamos trabalhar para nos sustentar e deveríamos entrar em uma faculdade até o final do ano. Drogas e excesso de álcool está totalmente fora de cogitação e se sairmos da linha, por um momento sequer, nós voltaríamos para casa imediatamente. As condições, obviamente foram aceitas sem pensarmos duas vezes ou até mesmo questionar o motivo de nossos pais terem mudado de ideia tão repentinamente.
De todo modo, foi assim que Lola e eu nos mudamos para um pequeno apartamento de dois quartos em um prédio super antigo de cinco andares sem elevador ou garagem, fazendo aulas no cursinho pré-vestibular de manhã, trabalhando durante a tarde toda e revisando o conteúdo das aulas durante a noite. Ou pelo menos no começo foi desse jeito.
Assim que nos mudamos e nos ajeitamos na nova casa, eu consegui um emprego em uma rede de livrarias no mesmo shopping onde Lola se tornou vendedora de uma grande loja de roupas. O trabalho é um pouco longe de casa, mas nós duas estávamos animadas com nossa liberdade recém adquirida e nos sentindo muito adultas.
Claro que a rotina de aulas, trabalho, estudo durou um curto tempo, e logo minha irmã estava substituindo as revisões por noites de baladas e eu por séries e livros. Não demorou muito para que eu voltasse a me sentir sufocada, e a me questionar se algum dia eu seria capaz de me sentir completa. Nessa mesma época, Lola e eu começamos a brigar mais que o normal. Especialmente porque ela não tem responsabilidade nenhuma, e eu estou frustrada e irritadiça. Ninguém nunca vence as discussões.
Os únicos momentos em que me sinto um pouco melhor são quando estou longe da realidade, vivendo através das páginas de um livro. Nem preciso dizer, que Lola, a alma agitada que é, fica completamente frustrada com as minhas escolhas.
Ela, por outro lado, curte cada momento da sua liberdade saindo com seus amigos e atrapalhando meu sono porque sempre traz seus amigos tarde da noite para casa ou chega fazendo barulho porque está bêbada. Normalmente os dois. E aparentemente, a irmã reclusa também a irrita porque não "está aproveitando nossa sorte para fazer as loucuras que deveríamos fazer enquanto somos jovens".
Nem preciso dizer que Lola e eu somos opostos, apesar de sermos completamente iguais até a última sarda, mas ainda assim ouvi diversas vezes que ela é "a mais bonita das duas". Acredite, isso não é nada legal. Especialmente quando duas temos o cabelo cobre caindo pelas costas com os cortes e comprimentos iguais, os mesmos olhos verdes, embora os meus sejam um pouco mais escuros que os dela, a mesma pele branca e sardenta.
Normalmente, todo mundo se confunde com as duas, mas Lola tem algo a mais que parece atrair as pessoas para si. E ela ama ser o centro das atenções. Eu, por outro lado, sou muito mais fechada. Prefiro a companhia dos livros e animais à das pessoas, e odeio que olhem para mim por muito tempo.
Mas apesar de tudo, até mesmo das brigas e implicâncias, Lola é minha melhor amiga. A única pessoa que passou pelas mesmas experiências e que consegue entender um pouco como me sinto em relação ao mundo. Às vezes, parece que temos apenas uma a outra.
Mas ainda assim, minha irmã prefere o mundo real. Ela me chama várias vezes para sair com seus amigos, mas eu quase sempre recuso. Sempre acordo no dia seguinte me sentindo tão vazia quanto na noite anterior, é a mesma sensação de quando termino um livro, só que misturado com uma ressaca infernal. Quando eu decido beber, porque não sou muito fã. Gosto da minha memória intacta no dia seguinte sem a sensação de ter sido atropelada por um elefante...
A questão é que eu sempre quis muito mais do que me foi oferecido. Faculdade, saideira com os amigos, trabalho... nada disso para mim faz muito sentido. É como se eu estivesse destinada a algo diferente, como se eu jamais me encaixasse na vida que todos parecem levar na boa.
Eu só não sei exatamente o que eu quero ainda. Espero um dia descobrir.
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Drapetomania
AventuraDrapetomania: um impulso incontrolável de fugir. Já sentiu como se vivesse sufocado? Como se, de alguma maneira, a sua vida fosse completamente errada e que, em algum lugar, há algo maior e melhor esperando? A obra completa será publicada pela Edito...