Sr. Lebrenaldo e o Lobo Loboni

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O inverno lá fora ficara com todo o seu frio noturno enquanto aqui em minha cabana, aconcheguei-me no calor que a lareira me dera de presente. Lendo meu jornal enquanto fumava meu cachimbo, perguntei-me se valeria a pena sair pela manhã para trazer mais verduras para a dispensa ou se eu deveria correr para esticar minhas patas e não deixar que esse inverno levasse minha boa forma com ele... “acho que não quero pensar nisso agora... voltemos à leitura.”

“Dona Borboleta queimou as patas na cozinha enquanto fazia chocolate” – dizia a notícia na primeira página do jornal. – “Após ser tratada das pequenas queimaduras de primeiro grau, disse à imprensa que não iria mais atender aos pedidos da madrinha e declarou ‘Que ela mesmo faça da próxima vez! ’”

― Creio que não vou conseguiu encomendar os brigadeiros pra festa do Ursininho... – lamentei e nesse instante minha esposa veio pra sala.

― Mas você nem queria gastar com ela meu amor. Podemos conseguir alguma outra coisa, o que importa é que o nosso filho leve algo para a festa do amiguinho dele. – ela sentou ao meu lado.

― Claro Linda Coelhina, meu amor, faremos pudim amanhã de manhã ou levaremos cenoura empanada. Se bem que o prato da vez será carne eu acho, toda vez os Ursolinos fazem mais comida com carne.

Ela sorriu para mim, revelando seus lindos dentes brancos.

― Vamos deixar isso pra mais tarde, quem sabe eu consiga alguma carne para preparar... – ela se interrompeu por um instante. – Lebreninho já está dormindo... acho que podemos... – ela sorriu para mim, não era de felicidade e sim de desejo, porém um som oco de batidas que vinha de fora a interrompeu.

― Tem alguém à porta... – olhei meu relógio. – Mas já são mais de onze horas! Quem viria a essa hora da noite?

Minha esposa me olhou angustiada, pois tanto ela e eu sabíamos do que poderia se tratar. Mais batidas à porta. Apesar do frio e da ventania lá fora, quem estava batendo a porta parecia calmo.

― Tenha calma, pode não ser ele... – falei quase sussurrando.

― Por que ele não para de vir aqui atrás de você? – perguntou ela assustada.

― Sr. Lebrenaldo? Alguém em casa? – uma voz abafada veio de fora.

― Ele vai fazer aquilo novamente com você e... vai acontecer de novo... – falou choramingando.

Olhamos-nos mais uma vez e dei um passo em direção a porta, ajeitando meu suéter.

― Não vá! – ela segurou minha mão, sussurrando. – Deixe que ele chame mais, ele vai desistir!

― Não, ele não vai...

O vento soprou forte lá fora, fazendo as fendas da janela e da porta assobiarem.

― Sr. Lebrenaldo... preciso de ajuda... tenho fome... – a voz abafada parecia cansada.

― Já estou indo! – falei tentando por calma na voz. – Só um minuto!

Fui até a cômoda e peguei minha escopeta, pus ao lado da porta de modo que eu a abrisse e não fosse visto.

― Estou indo. – avisei mais uma vez.

Olhei pela pequena janela em arco da porta de madeira. O vidro estava bastante embaçado e só podia ver a neve escura em rajadas de vento.

― Quem está aí? Dr. Galonir? Sr. Guaxinóbio? Quem está aí fora? – perguntei mesmo sabendo quem era, porém, não houve resposta.

Espiei por mais um minuto e não vi ninguém, apenas neve.

― Acho que já foi... – disse minha esposa.

Assim que nós fomos nos assentar mais uma vez, ouvimos um barulho de vidros se quebrando seguidos de sons metálicos de panelas caindo no chão de pedra da cozinha.

― Paaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaiii!!! – ouvi o grito do meu filho vindo do quarto.

Corri com o coração saindo pela boca juntamente com minha esposa e vi que a porta do quarto estava entreaberta e um vento fraco fazia-a ranger levemente.

― Filho! Filho! O que aconteceu?! – alertas, falamos quase em sincronia, ofegantes e assustados.

Meu filho puxou o cobertor até o peito e nos olhou assustado.

― Acho que tive um pesadelo... – grunhiu ainda assustado. – Vocês podiam ficar aqui comigo? – perguntou com os olhos lacrimejantes.

― Mas meu filho, você já tem oito anos, está na idade de dormir sozinho... – disse sua mãe acariciando suas orelhas castanhas.

Ouvi passos vindos da cozinha e tentei captar mais algum som com minhas longas orelhas.

― Amor, cuide dele que vou verificar a cozinha e a dispensa, tudo bem? Fique com a escopeta, eu vou apenas dar uma olhada.

― Tá bem, mas tenha cuidado. – e ela se aconchegou com nosso pequeno lebre assustado.

Caminhei a passos curtos e silenciosos pelo corredor que leva à dispensa e percebi o som de latas e sacolas sendo reviradas. Ele estava aqui dentro e algo poderia dar errado, meu medo aumentava e minhas pernas começaram a tremer tanto com o nervosismo e também com a brisa que vinha pela janela aberta da cozinha.

― Fique paradinho aí Sr. Lebrenaldo... – sussurrou o lobo branco que usava apenas uma gravata preta. Ele agora apontava uma faca para mim, surgindo da dispensa.

― Não me machuque, não machuque minha família, por favor, eu imploro... – minhas patas tremiam e meu coração acelerava cada vez mais e minha voz fraquejava.

Ele sorriu, puxando com a outra pata uma sacola abarrotada com os mantimentos da casa.

― Sabe que frutas e verduras não alimentam os carnívoros não é? – a voz dele era fria como a lâmina da faca que segurava.

― Não machuque minha família! – implorei mais uma vez.

― Por que não me atendeu à porta? Por que?

― Eu estava assustado! Estava com medo!

Ele caminhou para mais perto ainda apontando a faca, deixando a sacola deitada no canto do corredor e começou a me cercar, obrigando-me a me afastar e andar em círculos.

― Medo de um lobo? Normal não é? Eu só tenho fome! Eu poupo alguns de vocês! Mas parece que você sempre vai ser o que me fornece a carne sempre não é? Você é egoísta, mesquinho e não dá a míni... – a conversa é interrompida por um som de tiro. – O quê? – gritou o lobo enquanto eu caia no chão, lentamente, ficando de joelhos e encostando o rosto no carpete.

Minha visão rodopiava, ficando difícil focar a Coelhina segurando a minha escopeta. Pude perceber seu rosto aflito, mas com alguma decisão nos olhos.

― Se seu problema é com ele, leve-o! Mas não venha nunca mais! Já perdi filhotes demais por causa disso! Por causa dele! Leve-o! Logo... – ela começou a chorar e logo meu filho estava enrolado no cobertor, chorando atrás dela.

Senti meu corpo sendo levantado e vi a poça vermelha, meu próprio sangue... minha consciência foi me deixando aos poucos. Ví a sacola de mantimentos ser esvaziada, as latas rolando no chão, o som das conservas nos potes de vidro.

Assim que minha audição e meu olfato já haviam me deixado, pedi minha visão dentro da sacola de lona e balancei ali por uns instantes e então, o calor da minha lareira foi tirado de mim e o frio do inverno me acolheu, congelando meu sangue e levando minha alma, deixando apenas minha carne para ser saboreada.

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⏰ Última atualização: Dec 02, 2013 ⏰

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