Capítulo 1

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  PRESA NUMA ESCURIDÃO que me cercava como um caixão, não havia nadapara me distrair de minhas lembranças. Recordações vívidas queaguardavam para me emboscar sempre que minha mente não estavafocada. 

Mergulhada na escuridão, me lembrava das chamas ardentes que meacoitaram o rosto. Embora minhas mãos houvessem sido amarradas a umaestaca que se enterrava profundamente nas minhas costas, eu já havia merecuperado do ataque. O fogo fora afastado pouco antes de empolar minhapele, contudo minhas sobrancelhas e cílios há muito já haviam sidochamuscados pelas labaredas.

 — Apague as chamas! — ordenara a voz áspera de um homem. 

Eu soprei o fogo com lábios rachados, ressecados pelas labaredas e pelomedo. A umidade em minha boca desaparecera e meus dentes irradiavamcalor como se houvessem sido assados em um forno.

 — Idiota — ele praguejou. — Não com a boca. Use a mente. Apague aschamas com sua mente.

 Fechando os olhos, esforcei-me para concentrar meus pensamentos emfazer o inferno desaparecer.

 Estava disposta a fazer qualquer coisa, por mais irracional que pudesseser, para persuadir o homem a parar. 

— Esforce-se mais.Mais uma vez, o calor passou perto do meu rosto, a luz forte mecegando, mesmo eu estando com as pálpebras cerradas.

 — Toque fogo no cabelo dela. — Uma voz diferente instruiu. Seu donoparecia mais jovem e mais ansioso do que o outro homem. — Isso deveráencorajá-la. Vamos, meu pai, deixe-me fazê-lo. 

Meu corpo sobressaltou-se de medo intenso ao reconhecer a voz. Eu mecontorci para afrouxar as amarras que me prendiam, enquanto meuspensamentos se transformavam em um zumbido monótono. Um sussurroescapara de minha garganta, tornando-se mais alto, até percorrer todo oaposento e extinguir as chamas. 

O estalo metálico da tranca me despertou de sobressalto da lembrançaapavorante. Um facho pálido de luz amarelada cortou a escuridão, correndoao longo da parede de pedra quando a porta da cela se abriu. Meus olhosforam feridos pela claridade quando o brilho do lampião me atingiu. Eu oscerrei com força enquanto me encolhia no canto.

 — Mova-se, ratazana, ou vamos pegar o chicote! 

Dois guardas do calabouço prenderam uma corrente ao anel de metal queme rodeava o pescoço e me puxaram até eu ficar de pé. Cambaleei parafrente ante a dor lancinante ao redor do pescoço. De pé, com as pernastrêmulas, senti os guardas eficientemente acorrentarem minhas mãos paratrás e algemarem meus pés. 

Evitei olhar para a luz bruxuleante enquanto me conduziam pelo corredorprincipal do calabouço. Senti uma baforada de ar viciado e rançoso no rosto.Meus pés descalços se arrastavam por poças de dejetos que não podiamser identificados. 

Ignorando os chamados e gemidos dos outros prisioneiros, os guardassequer desaceleraram o passo, contudo meu coração se sobressaltava acada palavra. 

— Há, há, há... Tem alguém que vai balançar na ponta da corda.

 — Um baque, um estalo e sua última refeição vai deslizar pelas suaspernas!

 — Uma ratazana a menos para alimentar. 

— Levem-me! Levem-me! Eu também quero morrer!

 Nós paramos. Através das pálpebras semicerradas vi uma escadaria. Emuma tentativa de colocar o pé no primeiro degrau, tropecei nas correntes ecaí. Os guardas me levantaram à força. As beiradas ásperas dos degrausde pedra cortaram a pele exposta dos braços e das pernas. Após serarrastada através de duas grossas portas de metal, fui jogada no chão. Aluz do sol feria meus olhos. Eu os fechei com força e lágrimas rolaram porminhas faces. Era a primeira vez, em muitas estações, que eu estavavendo a luz do dia. 

Estudos sobre veneno - as lendas de Yelena ZaltanaOnde histórias criam vida. Descubra agora