Estefânia

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-Ambos sabemos que vai haver uma guerra civil depois de Nuvem Verde. As Terras Fluviais são um dos maiores produtores de mantimentos para o Império, se entrarmos na guerra os nossos campos vão ser destruídos, pessoas vão morrer. E os nossos filhos poderão tornar-se alvos. Jamais aceitarei tal irresponsabilidade! - gritei, usando as minhas palavras como armas de arremesso. Todos olhavam para mim. Estava de pé, minha pele estava quase tão vermelha quanto o meu cabelo. Não me importa, como Condessa de Pedra Bruma tenho de defender os interesses da minha família.- Deixa de parte o teu orgulho e pensa no teu filho. Pensa nas minhas filhas. Pensa na tua esposa e na tua filha. Pensa no meu marido e no meu filho. Deixa de pensar só em ti e na tua glória!

O meu irmão olhou para mim, espantado, nunca ninguém, além do mestre-de-armas e do nosso pai, se atrevera a elevar-lhe a voz naquele castelo. Então, seu espanto passou a raiva e sua cara ficou ainda mais vermelha que a minha.

-E que sabes tu, mulher? Falamos de guerra, não de bordados - uns quantos Condes e Duques riram-se de mim, por ser mulher, mas isso só aumentou minha fúria. Uma Duquesa jovem olhou-me com veneração e espanto, a única mulher presente naquele concílio, além de mim.

-Sou mulher, mas tenho mais respeito pela memória do pai do que tu - gritei-lhe. Os risos cessaram, mas minha raiva não. O meu irmão encolhera-se, mas eu não vou desistir, não irei colocar a minha família em perigo por causa dele.- E se me voltas a chamar de mulher, acredita que declaro a neutralidade da Casa Germano e assim bem que podes esquecer os nossos 5000 soldados.

-É um mal necessário. Temos de arriscar - disse ele, voltando à calma.- As Terras Fluviais serão sempre um alvo, temos de mostrar que somos fortes.

Dirigi-me até ele, visivelmente zangada. Vários nobres tentaram afastar-me dele, mas de nada serviu. Sendo uma senhora casada, nenhum homem além do meu marido deveria tocar-me, o que fez com nenhum homem presente não tentasse nada mais que dissuadir-me. A jovem Duquesa manteve-se sentada e sorriu-me levemente, como se apoiasse a minha decisão. Andei mais um pouco e fiquei frente a frente com o meu irmão. A raiva fluía dentro do meu corpo e o medo e o orgulho dentro do dele.

-Como te atreves a arriscar a vida da tua família? - gritei, dando-lhe um forte estalo.-Nunca pensei que conseguisses ser tão reles, tu que partilhas o mesmo sangue que eu!

Quando acabei de falar, saí do salão grande, em decididas passadas. Todos os nobres da região olhavam para mim com espanto e meu irmão tinha colocado a sua mão na cara. Patético. Um guarda abriu-me a porta. Corri pelos corredores e procurei o chefe da minha guarda, Sor Rodrigo Santos. Encontrei-o junto aos estábulos, apreciando um garanhão forte.

-Minha senhora, deveríamos cruzar este garanhão com uma das nossas melhores éguas? - perguntou-me.

-Depois pensaremos nisso, Sor Rodrigo. Agora quero a minha montada e a vossa prontas para um pequeno passeio. Que a minha guarda pessoal se prepare para partir, que as damas de companhia façam os preparativos para a viagem de volta para casa - ordenei, bruscamente.

-Sim, minha Senhora - e com isto Sor Rodrigo desatou a dar ordens a todos os pajens, damas e guardas que faziam parte da minha escolta. Todos eles se puseram em reboliço, e dois pajens preparam a nossa montada.- Para onde vamos, Vossa Excelência?

- Vamos á Lagoa Dos Salgueiros, preciso de me encontrar com meu pai - disse eu. Meu pai, fora Príncipe Das Terras Fluviais, herdei o seu cabelo ruivo, o seu bom senso e inteligência, fora um dos melhores Senhores Defensores que o Império alguma vez viu, mas era agora apenas uma memória da minha infância. Já não "vivia", mas as suas palavras e gestos ainda viviam nas minhas memórias e recordações e apenas me sentia com ele quando ia ao seu ultimo local de repouso, a Lagoa dos Salgueiros. Uma grande Lagoa, em forma de Quarto Crescente, em que nas suas margens férteis crescia uma floresta de salgueiros. Era a mais antiga propriedade da Casa Sousa, protegida por uma simples torre de pedra, parcialmente em ruínas e por uma muralha que se ligava às margens da lagoa.

Saímos do Castelo e cavalgamos mais de uma hora, até encontrarmos uma muralha em forma de anel parcial, que cujas pontas se ligavam à Lagoa. Esta ultima era bastante funda e a sua margem exterior era a Grande Floresta de Salgueiros, e na margem interior a Pequena Floresta de Salgueiros. Ambas as florestas eram bastante densas, formando uma barreira contra cavalaria e dificultando a passagem de infantaria, principalmente a pesada, pois as armaduras metálicas, densas e espaçosas tornavam a passagem pela floresta e pela lagoa quase impossível.

- O Castro da Lagoa dos Salgueiros, terra ancestral dos Sousa. Uma propriedade facilmente defensível e bastante rentável. Ainda agora é uma das maiores fontes de rendimento dos Sousa - disse eu, orgulhosa. Cresci naquele castelo durante parte da minha infância, durante a Crise Dinástica de 1057. Fui bastante feliz naquele ano, mesmo com todas as mortes no Império.

Cavalgamos mais uns breves minutos, até alcançarmos os grandes portões de carvalho e pau-ferro. As duas torres que guardavam a entrada estavam guarnecidas com 4 soldados, que mal me viram abriram os portões. O meu tio, Castelão do Castro da Lagoa dos Salgueiros, rapidamente se encontrou comigo e com Sor Rodrigo. Encheu-me de beijos e velozmente me levou até ao Bosque Senhorial, onde os Senhores do Castro da Lagoa dos Salgueiros estavam enterrados, a família Sousa, cujo chefe recebia este titulo desde tempos imemoriais havia sido ali enterrada e continuará a ser no futuro.

-Minha sobrinha, sabes que és como uma filha para mim, dar-te-ei conselho se quiseres - disse o meu tio, que não tendo filhos, tratava os seus 3 sobrinhos como se o fossem.

-Obrigada, senhor meu Tio. Podia-me levar até à lápide de meu pai? - perguntei, pois todas as lápides se pareciam umas com as outras, cobertas de musgo, folhas e lama. O velho levou-me até a uma lápide no centro do bosque, lugar de repouso do fundador da Dinastia Sousa, António Sousa. Depois andamos por entre uma floresta de lápides, até chegarmos à campa mais branca, o lugar de ultimo descanso de meu pai, Pedro IV de Cruzamento Corrido. Sentei-me numa pedra e, colocando as mãos na cara, chorei.

- Que ei eu de fazer? - perguntei aos mortos, gritando. Os pássaros que repousavam nos braços das árvores voaram em alvoroço.-Porque partiste, meu pai? Tu saberias o que fazer? Tu protegerias a tua família! Porque não faz ele o mesmo? Diz-me, meu pai! DIZ-ME!

Sor Rodrigo não me acompanhara, pois apenas membros da família Sousa podiam entrar no Bosque, mas meu tio, que com a sua mão pousada no meu ombro, ali estava, me suportando, me consolando.

-Minha filha, desde criança foste ensinada a viver segundo as palavras da Casa, "O Coração antes da Glória", por isso te digo, faz o que te manda o coração. Aonde está o teu coração? Nos teus filhos ou na Casa Sousa? - perguntou o Castelão do Castro da Lagoa dos Salgueiros. Parei de chorar e olhei para ele. Fiquei séria e as lágrimas secaram-se na minha cara.

-Meu coração está com a minha família. Inês, Gabriela e Luís não sofrerão numa guerra que não é deles. O meu marido vai declarar a neutralidade da Casa Germano, vou garantir que isso aconteça e nem o Santo Pai vai me parar - afirmei, levantando-me. Meu tio sorriu-me e colocou-me as suas mãos rugosas na cara. Parecia-se tanto com meu pai.

-E eu vou garantir-me que o teu irmão não faça nenhuma loucura. O casamento do teu sobrinho e da tua filha está para menos de um ano, só temos me manter uma paz armada até lá - respondeu o velho, decidido.- Mas durante a guerra civil que vem aí, terei de voltar a comandar os exércitos das Terras Fluviais, não vou poder conter as decisões do teu irmão como tenho feito. Quase que entramos em guerra com as Terras Férteis e apesar se ambas as regiões possuírem exércitos enormes, nós somos a região mais fraca, não temos montanhas para nos defendermos dos outros, nem florestas imensas nas nossas fronteiras para atrasar o avanço dos inimigos. Se não fosse a tua irmã e eu a arranjar casamentos entre casas menores e entre alguns herdeiros com segundas filhas de alguns duques, não sei o que teria acontecido.

- Precisamos de conte-lo, urgentemente. Ele está impulsivo demais, as Terras Fluviais não vão resistir às suas ações. A neutralidade das casas menores é a maior arma que temos e nem todos os condes e barões têm a sensatez para o fazer - disse eu, olhando para as árvores.-Pensei em cercar Cruzamento Corrido, mas um cerco seria impossível.

- Pois seria, minha filha. A única solução que temos é esperar. Esperar e preparar as nossas famílias para a catástrofe.

-Que Os Três protejam as nossas vidas.

-Amém.

Um Coração Medieval: Do Povo À NobrezaOnde histórias criam vida. Descubra agora