Capítulo 1 - Parte 1

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Conheci Naima numa noite de aula na faculdade, em maio, quando estava no quarto e último ano do curso de Filosofia e as coisas estavam começando a fazer sentido. Parecia uma certeza que os dias não mudariam dali em diante. A formatura se aproximava para alguns dos meus colegas, mas eu decidi não começar o projeto de monografia. Não sabia o que escrever. Por mais que eu me interessasse e estudasse sobre qualquer assunto, não me via capaz de acrescentar nada a coisa alguma e preferia largar tudo a fazer um trabalho como dezenas de outros, limitado a estudar um conceito ou um livro sob a ótica de determinado filósofo – típico trabalho formado pelo esquema citação apresentando um argumento seguida de análise do argumento contextualizando a citação e inserindo algo que possa ser chamado de autoral e que vem seguida de citação justificando a análise seguida de nova citação apresentando novo argumento e assim por diante, na certeza de que, sendo apenas uma licenciatura numa universidade particular de cidade pequena, nem a banca se importaria de ler o trabalho –, e mesmo que eu me rendesse a essa esterilidade acadêmica, não me via dando aulas para o resto da vida – isso sendo, aulas para turmas de ensino médio, se alguma escola da região incluísse filosofia na grade. Mas, senão isso, o que fazer? Nem vinte e três anos, já me sentia velho demais para começar um novo curso. Os problemas seriam os mesmos em qualquer lugar, eu sabia.

Os alunos, várias formigas de diferentes formigueiros se cruzando sem afetarem umas às outras, vinham em grupos, conversando ou não, alguns com os rostos magnetizados aos seus celulares, todos imersos em névoas pessoais. Muitos, como eu, tinham que encarar a aula depois de um dia de trabalho e não estavam ali por inteiro. Passando ao lado da biblioteca, a caminho da minha sala, ouvi de lá de dentro uma voz ao microfone. Som ecoado, de fôlego, entre o canto e o teatral, sério e por vezes interpretativo e melancólico. Sílabas que dançavam pelo ar como a língua na boca tecia teias invisíveis.

A biblioteca era dividida em dois setores. O primeiro, onde ela estava, era uma grande área vazia, de aparência clínica, usada para exposições de alunos dos cursos de fotografia e artes visuais, com chão branco e paredes brancas e com duas grandes pilastras brancas paralelas uma a outra. Anexadas a esse salão havia uma pequena livraria da faculdade, especializada em livros técnicos e publicações de egressos – mantendo alguns best-sellers e outros atrativos na estante para poder se sustentar –, e uma sala de projeção para filmes e reuniões. À direita da sala de projeção, ficava a porta de vidro que levava ao segundo setor da biblioteca, uma extensão do primeiro setor, com estantes de livros, DVDs e o balcão dos bibliotecários. Havia ainda, no segundo setor, uma rampa que levava a um segundo andar, com mais estantes e mesas e cubículos reservados para grupos de estudo ou indivíduos muito sensíveis aos passos e sussurros que inevitavelmente ocorriam na área comum.

Numa das pilastras estava preso um cartaz branco que se camuflaria não fossem os detalhes azuis nos cantos. Nele estava escrito POESIA NO CAMPUS – TERÇAS E QUINTAS, DAS 18 ÀS 19H sob o nome e a logo da universidade. Vários alunos se reuniam ao redor dessa pilastra. Estavam aglomerados, mas mantinham distância do centro, onde, bloqueada da minha vista, ela estava sentada e lia. Fui me juntar ao grupo, aproveitando as frestas entre as pessoas para me aproximar e dar uma olhada em quem era que nos atraía. Aos poucos fui captando o que ela dizia e quase reconheci o poema. Eram versos livres, longos, densos. Imaginava se tratar de algo do Roberto Piva. Podia ser um poema traduzido do Allen Ginsberg. O estilo me era claro, mas nada nas palavras me trazia referência exata do autor, um verso que fosse que se destacasse a ponto de me recordar leituras anteriores. O eco na sala não me ajudava a entender o que ela dizia. De início o microfone me pareceu desnecessário para público e espaço tão limitados, mas agora, ali no meu do povo, vi que seria impossível captar uma voz que não estivesse amplificada. Tentei ao máximo me concentrar para ouvir somente os versos entre todos os sons presentes – murmúrios, conversas, celulares tocando e apitando, tudo muito mais alto do que deveria ser –, queria entender quais eram as palavras por trás da sonoridade, embora a sonoridade por si bastasse para agradar.

No fim você se encontra sozinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora