Aqueles longos cabelos negros, cujas pontas alcançavam as coxas, cortinas ao vento. Ela conhecia o sebo da cidade. Numa manhã de segunda, três ou quatro anos antes – eu tinha acabado de me mudar para X –, quando estava procurando um emprego para não morrer de fome, entreguei um currículo para o funcionário de um sebo. Antes de entrar, uma garota passou, seguindo em direção oposta. De imediato reparei seus cabelos, iguais aos de Naima, e o jeito que ela andava. Ela era um ano mais nova que eu, devia estar começando a faculdade. Vestia uma camiseta regata branca que deixava a alça preta do sutiã a mostra, uma saia longa estampada e um par de sandálias rasas quase invisíveis por baixo da saia sempre que ela dava um passo. Tinha anéis nos dedos, quase em todos. Possível que a garota do sebo e Naima fossem a mesma pessoa. Não falaria nada sobre isso com ela nem no sábado nem em dia nenhum dos que passamos juntos. Nunca pareceu importante – tanto que esqueci por completo desse detalhe. Apenas uma das muitas coincidências da vida.
A garota virou a esquina e eu entrei no sebo. Uma casa enorme e antiga, preservada como um monumento histórico. Porta adentro havia um corredor com duas portas nas paredes que o formava. O corredor terminava na sala em que ficava o balcão do caixa, uma escadaria bloqueada por uma portinhola de madeira e mais outra porta para outra sala. Segui reto e o rapaz no balcão me cumprimentou. Eu estava um pouco nervoso, minhas mãos tremiam. Nunca havia entregado um currículo pessoalmente.
— Bom dia. Posso ajudar?
— Bom dia. Eu não sei se vocês estão contratando ou não, mas eu estou procurando um emprego, então vim deixar um currículo aqui, se não for problema – não pensei em me apresentar antes ou perguntar mais sobre o lugar, só larguei a frase ensaiada mentalmente dezenas de vezes, feito uma criança tímida forçada a pedir algo a um estranho.
— Não é problema nenhum. Pra falar a verdade, eu não tenho autoridade nenhuma aqui quanto à contratação, e a dona Mônica não se encontra no momento. Mas assim que ela chegar eu falo de ti.
— Tá ok.
— Tu já veio aqui antes?
— Não, nunca. Cheguei na cidade esse sábado.
— De onde tu é?
— Y. Não é tão longe.
— Veio pro litoral, então?
— Mais pela faculdade.
— Tu estuda filosofia, né?, vi de relance no currículo. Começou agora?
— Isso.
— Deixa eu te mostrar as coisas aqui, de repente você acha alguma coisa que te interesse. Eu mesmo já encontrei cada tesouro largado nessas estantes que vou te dizer.
Não faria mal ouvir o que ele falava. Mesmo que eu não me interessasse muito, podia melhorar as minhas chances de conseguir o emprego. Fui atrás dele, pelo corredor e ele apontou para a porta da direita.
— Aqui ficam os livros de autoajuda, esotéricos, livros de história, psicologia, revistas, gibis, tem outros tipos de livros técnicos, de medicina et cetera – dentro da sala uma mulher de cerca de quarenta anos analisava as estantes com seu marido. – Desse lado – apontou para a sala oposta – ficam os livros de ficção, poesia, nacionais e internacionais, a maior parte usados, mas tem duas estantes dedicadas a novos, caso tu prefira.
Enquanto falava feito um guia turístico conduzindo bem mais que somente uma pessoa, entrávamos na sala.
— Lá atrás, do lado do meu balcão, tem uns discos, caso tu te interesse. Mesmo esquema, dividido entre nacionais, internacionais. Eu não sei o que tu costuma ler, mas alguma coisa aqui deve te agradar.
Olhava as lombadas e os títulos, livros de capa dura, brochuras roídas pelo tempo, folhas amareladas e sujas de poeira já grudada ao papel formando pequenas bolas cinzentas por todo o miolo. As estantes forravam as paredes do cômodo, mas apenas aquele trecho a minha frente já me ocupava a vista e parecia levar horas para que fosse analisado por inteiro.
— Tu não deve saber nada da história daqui, né?
— Do sebo ou da cidade? A resposta é não pra qualquer um dos dois.
— Do sebo. Se be-é um pouco dos dois. Muita gente não sabe, mas esse sebo é parte da história de X.
Vasculhou as estantes procurando algum título específico até que, quando achou, puxou o livro e me mostrou dando a entender que era de grande importância. Examinei por um momento. Um livro de pouco mais de duzentas páginas. A sinopse dizia ser um roman à clef, contando a história de Luiz Fermín, provável alter ego do autor, um estrangeiro, escritor morto de fome, na Paris na década de quarenta, seus encontros eróticos, bebedeiras. Poderia ser a sinopse de tantos livros que já havia lido que não me levantou muito interesse. As orelhas tinham um breve texto crítico de algum especialista falando dos efeitos do autor na literatura da época, de como ele conseguiu, com um estilo variando entre o seco minimalista e o fluxo de consciência poético, um texto original, nem Hemingway nem Henry Miller, em algum ponto até o momento não explorado do grande espectro da literatura quase marginal.
— Vê o nome do autor, Jean Allard.
— Sim?
— Então, o nome daqui é Casa Allard por causa desse autor, que viveu nessa casa pelos últimos anos de sua vida e é também a casa em que ele nasceu. Ele é meio obscuro, mas ainda é respeitado em alguns cantos da Europa. Em Paris, o prédio em que ele viveu nos anos desse livro leva uma placa na entrada que diz aqui viveu Jean Allard. A história é a seguinte – e então sua fala passou a soar ensaiada, não como a de quem decora um texto mas como a de quem repete tantas vezes um caso que acaba encontrando a forma perfeita de o contar, desenvolvendo um ritmo padronizado, repetido com exatidão todas as vezes em que o conta –, o nome de batismo dele é Valério Almeida dos Santos Batista. Nasceu nessa cidade, em mil novecentos e vinte. Chegou a publicar algumas poesias e uma coleção de contos no Brasil, mas sem nenhum reconhecimento artístico ou sucesso econômico. Na década de quarenta, então, com ajuda da fortuna da família, o pai era um político aqui de X e o avô um agricultor de sucesso, ele foi à Paris, já que era lá que se dizia que os artistas estavam, embora tivesse dito à família que ia estudara Direito. Essa parte é meio acredite se quiser, já que tem algumas inconsistências. O que se dá a entender lendo os livros dele, que são na maior parte autobiográficos, é que ele conheceu grandes artistas da época, conviveu com Ernest Hemingway, James Joyce, Ezra Pound, Picasso, essa gente da geração perdida e alguns dos surrealistas. O problema é que isso foi em quarenta e eu não acho que todos eles ainda estavam lá nesse período.
— Acho que Hemingway, não. Joyce e Pound, pode ser, depende.
— Também não sei. Só sei que os livros não são muito sutis ao descreverem essas pessoas. Mas é muito bom. Não parece nada demais assim vendo por cima, mas ele era mesmo um ótimo escritor.
— Imagino.
Devolvi o livro a ele.
— Não, pode levar.
— É que eu não trouxe dinheiro nenhum, só vim entregar o currículo.
— Deixa pra lá. O livro é cinco reais e, cá entre nós, ninguém compra. Tem uns cinco desses aqui mofando na estante. Leva pra ti, lê, volta aqui e me diz o que achou, daí tu compra alguma coisa na próxima pra compensar.
— Tá certo então, obrigado.
— Vai querer ver mais alguma coisa.
— Até queria, mas tô quebrado, por isso preciso do emprego.
— Ok, tá bom. Nem te preocupa, assim que a dona Mônica chegar eu falo de ti pra ela.
— Obrigado – caminhei até a saída.
— Até a próxima.
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No fim você se encontra sozinho
Ficción GeneralPrestes a se formar, aceito apenas para empregos com data de validade, Tomas se envolve com Naima, que o apresenta à boemia e o submundo artístico da cidade em que vivem. Com ela, relembra dos outros relacionamentos de sua vida, os acontecimentos qu...