O Demônio da Culpa

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O som crocante em meus molares interferia em meus pensamentos. Parei de mastigar. "Seria ótimo poder olhar lá fora hoje, o sol parece estar tão brilhante", pensei. Voltei a mastigar. O gosto doce dos cereais parecia amargo. O verso da caixa dizia que eu ainda podia comer, mas meu estômago dizia que ela estava errada. Repousei a colher no canto do prato. Uma solitária lágrima se misturou ao leite. Parei de mastigar. Se ele ao menos falasse comigo, pensei. Talvez se eu abrir apenas um pedaço da cortina ele não fique tão bravo como de costume. Da última vez ele quebrou minha perna esquerda. Ainda dói, tenho medo que atrofie. Não posso correr esse risco. Desisto da ideia. Volto a mastigar. Devo apreciar esse gosto amargo, afinal é a última caixa de cereal. Após esta, me restará apenas a água da torneira. Seu olhar é tão sombrio e aterrorizador. Num esforço mais psicológico que físico eu tento erguer a cabeça. Eu já tinha esquecido os detalhes do seu rosto. Bem ali na minha frente estava ele, com uma fina camada de pele segurando a cabeça na frente do pescoço. Sua cabeça retorcida apontava os olhos diretamente para mim. Suas mãos se mantinham fixas a mesa como se aguardasse que eu terminasse meu café da manhã para me seguir o resto do dia.
"Pelo amor de Deus, por favor. Eu estou implorando. Me deixe sair. Eu não tive a intenção. Eu não te ajudei porque tive medo. Se eu parasse o carro, ia ser espancado! Por favor..."
Mais lágrimas agora fazem companhia à anteriormente solitária que havia caído em meu prato. Aquele menino que havia atropelado há duas semanas, semi-degolado a minha frente... não disse uma palavra. Apenas continuou me encarando.

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