O Anjo

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Quando eu era pequena, toda noite um anjo me visitava.

Bem, ao menos era isso o que ele dizia ser. Um anjo. Vestia um capuz branco e tinha asas encardidas brotando de suas costas.

Ele entrava pela janela, que eu sempre mantinha aberta, e falava comigo. Me consolava com sua voz suave. Acariciava meus cabelos, cantarolava. Ele era mais carinhoso do que os meus pais.

Ele dizia que caiu do céu e agora sua função na Terra era cuidar de crianças boazinhas e abençoa-las. Eu tinha tanta sorte. Ele ficava assim até eu adormecer, e então se aprumava em um canto escuro e me observava, velando o meu sono.

Seus olhos dourados brilhavam no breu de uma forma sinistra. Mas eu não tinha medo. Por que teria medo de um anjo? Perto do amanhecer, ele ia embora, me deixando um beijo cálido na testa. Eu adorava meu anjo. Naquela época meu pai me batia, então tudo o que me ajudava a continuar eram as carícias do anjo.

À medida que os anos passavam, eu crescia e perdia um pouco da inocência infantil. Então comecei a perceber que às vezes o anjo subia em cima de mim. Seus carinhos iam ficando mais... Invasivos e eu sentia quando ele cravava os dentes afiados na pele sensível do meu pescoço. Ele sugava minha energia vital, mas não doía. Meus nervos ferviam com um calor agradável, eu encarava o teto com meus olhos grogues e via as cores do Paraíso.

Eu não achava que o anjo me fazia mal, mas logo todos perceberam que eu estava ficando fraca. Tinha olheiras profundas, pele amarelada, e fui diagnosticada com anemia por perda de sangue. Os médicos disseram que talvez eu tivesse um parasita em minhas entranhas. Eu sabia a verdade, mas não contaria a ninguém porquê afastariam meu anjo de mim.

Até que uma noite, meu pai viu uma figura encapuzada escalando minha varanda. Simplesmente pegou seu revólver e entrou de fininho no meu quarto. Encontrou o anjo sobre o meu corpo franzino, tocando minha pele nua e se saciando com meu sangue. Ele atirou 4 vezes seguidas para ter certeza de que seria fatal. O anjo caiu para o lado e, no chão, rapidamente se esvaiu em sangue. Eu encarei tudo com olhos arregalados e perplexos. Mas anjos não sangram. Anjos não morrem.

Eu nunca entendi realmente o que estava acontecendo e meus pais e a polícia acharam que eu ficaria menos traumatizada se eles não me contassem. Mas o único trauma foi perder meu melhor amigo, meu guardião enviado dos céus. Eu chorava encolhida na escuridão noturna, sempre esperando que ele voltasse. Mas meu anjo não era realmente um anjo, e o mundo ficou melhor sem ele.

Cresci infeliz e me tornei uma mulher  taciturna e sem amigos. As pessoas sempre me decepcionavam. Eu pertencia ao céu, junto com meu anjo. Até que um dia, vi uma reportagem policial sobre o caso de um maníaco pedófilo que costurou asas nas costas. Ele acreditava que era um anjo renegado e que beber sangue inocente o tornaria um deus. Por anos ele abusou de uma garotinha, que por coincidência era eu. O pai dela o matou em sua defesa e se tornou um herói. Eu não era a única criança vitimada por ele, mas era a sua preferida. Se não fosse detido, ele continuaria a me matar aos poucos.

Eu era a sua preferida. Meu anjo me amava assim como eu o amava. Aquilo não parecia um abuso. Parecia uma benção. Ainda carrego as cicatrizes de mordidas em minha pele, são minhas lembranças de infância mais doces.

E às vezes, nas noites mais sombrias, eu choro de saudade dele.  Da luz celestial de seus olhos iluminando o breu.

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