Capítulo 3

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Voltada para mim, com a mão esquerda no quadril requebrado, enfiou a outra no olho direito, afundando os dedos sem unhas no vão escuro e removendo uma bola branca e vermelha, pegajosa e sanguinolenta, com nervos ainda ligados ao cérebro – que não hesitou em romper com um puxão. Aquele, percebi, era seu belo olho azul, e logo este foi jogado no balde junto com a longa língua. A operação se repetiu com o globo esquerdo e, quando acabou, tudo que havia no lugar de suas duas órbitas eram dois buracos negros e vazios. Um completo vácuo e ausência de qualquer coisa era o que havia dentro daqueles olhos sem vida.

Mas o espetáculo ainda não havia terminado.

Voltando para perto da parede com ganchos onde já pendurara a camisa, a calça e a peruca, ela ergueu o braço esquerdo e, com o direito, abriu um zíper que havia sob a axila; desceu o zíper até o tornozelo, despiu toda a pele e a pendurou cuidadosamente no cabide, tomando todo cuidado para não amassá-la.

De volta à mesa, livrou-se ainda dos músculos e dos órgãos, um a um, enchendo a mesa depois que o balde ficou lotado; tanto que logo formaram montes de carne esponjosa e, sendo muitos e escorregadios, começaram a escorrer e a cair no chão, sujando de sangue o tapete do motel. Contemplei, horrorizado, aquele espetáculo macabro.

Curiosamente, apesar do estado de choque, ocorreu-me uma preocupação secundária e, alguns diriam, até redundante. O que faríamos com aquele monte de órgãos humanos frescos despejados sobre o carpete quando fôssemos deixar o motel? Deixaríamos tudo ali, daquele jeito? Será que Micaela recolocaria tudo de volta? – o que me deixaria profundamente aliviado; e que era bem possível, já que todos pareciam continuar funcionando perfeitamente, mesmo separados um do outro – Ou será que eu teria de guardar aquela nojeira no porta-malas do meu carro?

Também, mesmo se ela recolocasse tudo, ou se eu guardasse no carro, como justificar a sujeira no tapete e no chão? Aquilo era cena de homicídio, e jamais sairíamos do motel sem impedimentos da segurança. Impossível limpar, mesmo se ela me ajudasse, apenas com água e sabonete – que era tudo de que dispúnhamos. Havia muito sangue e fluidos corporais que não sairiam facilmente.

Com certeza, chamariam a polícia.

Afora isso, havia também outra questão ainda mais importante. Permitiria Micaela, aparte disso, que eu deixasse aquele quarto algum dia, de qualquer maneira, vivo?

Volvendo minha atenção para ela e para o espetáculo bizarro diante de mim, notei que Micaela acabara de colocar sobre a mesa seu coração que, percebi, batia mesmo fora do corpo, como se ela nunca o tivesse governado.

Em pouco tempo, diante de mim não havia nada além de um pavoroso esqueleto cinza esbranquiçado, áspero e, pareceu-me, quebradiço; e o esqueleto ainda dançava e se insinuava para mim, ora rebolando, ora apontando para mim ou enviando-me um beijo carinhoso de sua mandíbula cadavérica sem dentes.

Para o grande final, pegou um quebra-nozes e martelou seu crânio até rachá-lo ao meio. Então, removeu dali um cérebro escuro e esponjoso, cheio de líquido e eletricidade, e nada mais – nada de pensamentos originais, de consciência ou de alma.

Da bela mulher restava apenas, então, aquele esqueleto branco de pé diante de mim, com um crânio rachado vazio.

Por último, começou a me mostrar como seus ossos eram frágeis, roçando e ralando um no outro, e reduzindo-os a nada mais que um inútil monte de cinzas. O que sobrou daquela linda mulher certamente deve ter se dirigido para a cama, me tocado de leve, provocando-me para o acasalamento sem compromissos, e deitado, esperando por minha iniciativa máscula. Mas o que sobrou daquela linda mulher depois de retirar todos os seus adereços, foi absolutamente nada.

De sua beleza não me restava sequer a lembrança. De seu cérebro não restou um pensamento útil sequer. Não havia e nunca houve nada dentro dela. Era uma casca vazia, sem mente e sem alma; e agora era um vazio sem casca.

Desconsolado, tirei os sapatos e a roupa e me deitei. Virei-me, e contemplei o vazio que afundava o travesseiro ao meu lado.

A bem da verdade, não era ainda um completo vazio; pois aquela bela jovem removera as roupas caras, o cabelo volumoso e até mesmo a pele e os ossos; mas, curiosamente, permanecia ali a maquiagem que lhe dera vida às faces.

Obviamente se esquecera de removê-la.

Imagino que a coisa vazia deitada ao meu lado deve ter percebido onde meus olhos se concentravam, pois, após um momento, perguntou-me:

_Que foi querido? Quer que eu tire a maquiagem?

"Não", eu disse, "você fica bem com ela".

_Mas eu queria que você me visse como sou de verdade. Não sou apenas essa garota superficial que você imagina.

Olhei para ela e, através do vazio que era, pude ver o colchão afundado sob seu peso, a porta do pequeno banheiro aberta e a piscina de hidromassagem ao fundo. Não havia nada, absolutamente nada, a obstar minha vista; nada, exceto por umas manchas esfumaçadas, de roxo e rosa, que compunham sua delicada maquiagem.

Passamos os minutos seguintes conversando sobre nada; jogando conversa fora – conversávamos sobre água, como se diz no interior. Lembro que tentei ainda extrair algum conteúdo aproveitável daquela figura inexistente ao meu lado. Lembro-me de ter perguntado a ela a respeito de suas preferências sobre música, cinema e, até mesmo, sobre moda. Sua resposta foi praticamente a mesma para todos os assuntos.

Ela gostava do que estava na moda e pronto.

Imagino que minha conversa deve ter sido bem pouco interessante, pois, depois de um tempo, ela já não me respondia nada. Talvez tenha dormido. Talvez até o pouco de consciência que possuía não foi capaz de me suportar por mais do que aqueles poucos minutos que passamos juntos. Seja como for, seu silêncio perdurou e não demorei a perceber que conversava sozinho com um vazio maquiado que afundava o colchão.

Passei os vários momentos seguintes – horas, na verdade – tentando encontrar naquela figura vazia algo, qualquer coisa, que me estimulasse ao prazer ou que me desse, ao menos, um pouco de alegria ou do alívio passageiro que esperava encontrar ao seu lado; mas foi em vão.

Aquela foi minha primeira grande decepção amorosa e, devo dizer, deixou-me traumatizado por um longo tempo. Pessoalmente, gosto de pensar que muitas pessoas passaram pelo mesmo que eu. Afinal, não devo ter sido o primeiro homem a tentar se relacionar com uma casca vazia.

Mas, vamos voltar ao meu relato.

Por fim decidido, resolvi me levantar.

Vesti-me sem pressa, vez por outra voltando-me ao vazio inerte no travesseiro ao lado. Pequei minhas coisas e saí.

Enquanto me encaminhava para a porta, fiz questão de não olhar mais para a cama. Tampouco olhei de novo para os ganchos na parede ou para a mesa e tapete no centro, onde ainda deveriam repousar os órgãos de Micaela, jogados num monte como lixo. Fechei os olhos para tudo isso, descrente de que fosse verdade.

Tranquei a porta atrás de mim e desci a escada iluminada; dei a partida no carro, ignorando o acento vazio ao meu lado; apertei o botão na parede, fazendo subir a tela de privacidade com os corações em chamas, e me dirigi para a saída.

Para meu grande alívio, a atendente – até agora não sei se foi a mesma da entrada – não pareceu estranhar o fato de eu estar deixando o estabelecimento sozinho, apesar de ter entrado acompanhado por uma bela mulher.

Entreguei a chave do quarto e fiz o pagamento referente às oito horas de permanência mínima, apesar de ter permanecido ali menos do que quatro, e uma mão feminina entregou o meu documento, e apenas o meu.

Pensei em perguntar-lhe se, por acaso, lembrava-se de mim e, também, se eu havia realmente entrado acompanhado com alguém. No entanto, temendo a resposta, preferi não formular a pergunta.

Profundamente perturbado, deixei aquele motel para nunca mais voltar, deixando ali, naquele pequeno quarto luxuoso, apenas o vazio que trouxera comigo.

FIM

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⏰ Última atualização: Oct 16, 2016 ⏰

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