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Era uma manhã de quarta-feira e a cidade se arrastava por mais um inverno em setembro. Da janela do quarto se via as flores brancas dos ipês, enfeitando as ruas como uma pequena manta de neve. A única que seria possível, afinal nunca nevava em Porto Camélia, uma cidade no litoral do Brasil.

O despertador rompeu o silêncio do apartamento e, por conta da música insistente, o celular deslizava sobre a mesa de cabeceira. Retirei a mão debaixo do cobertor e procurei pelo aparelho que tocava cada vez mais alto. A busca desenfreada continuou até que o escutei tombar no chão.

— Argh — empurrei a coberta com os pés e arrastei-me em direção ao banheiro. Lancei o pijama por cima do cesto e o gato gorducho conseguiu desviar nos últimos segundos. A água escorria pelo meu rosto e a bola de pelos estirou-se pelo tapete para desfrutar do vapor quente do banho.

Com a toalha presa ao redor do corpo, preparei o chá para levar e despejei a ração de Miky na vasilha amarela. Pus todos os livros na mochila e algumas gotas de água pingaram pelo chão, marcando o trajeto que percorri indo e vindo.

Assoprei a franja para cima, ao mesmo tempo em que me esforçava piedosamente para enxergar o botão do short de cintura alta. O gato, deitado no braço do sofá, me observava de um jeito debochado.

— Até — mandei beijos e agarrei a caneca térmica em cima da mesa.

Entrei com cuidado no elevador para não danificar a tela de pintura que carregava. Entretanto, lá estava eu de volta ao apartamento, após reparar em meus pés. Sem sapatos.

Um miau curto veio de Miky como se dissesse que havia avisado.

— Eu sei, eu sei — murmurei ao trancar a porta pela segunda vez.

O prédio de três andares, em que eu morava, era pintado por um tom de castanho e naquele horário, as janelas escuras estavam quase todas fechadas. Dali de fora, eu conseguia reconhecer o meu apartamento no lado esquerdo do primeiro andar. O 114B com as cortinas fechadas e um jarro de petúnias pendurado no peitoril.

Atravessei a rua principal rumo à estação do metrô e o pequeno comércio começava a ganhar movimento. Dois funcionários erguiam as grades do mercadinho Bétula e, mais à frente, a vitrine da loja de artesanato recebia novos itens.

Guardei a caneca vazia do chá e coloquei o casaco. O trem se aproximou da estação e as pessoas entraram em seguida. Sentei próxima à janela e peguei na mochila o livro que havia comprado há poucos dias. Não precisou de muito para que eu me perdesse nos lugares incrivelmente mágicos de Green Gables.

— Tenho quase certeza que eles ficam juntos no final — ouvi alguém dizer. A voz rouca me pegou desprevenida e eu me esforcei para não soltar uma exclamação espantada.

O cara sentado ao meu lado tinha o cabelo escuro e cachos que pendiam para o rosto. Recostado na cadeira e com os olhos fixos na página, a luz avermelhada da manhã pousava sobre ele como se fizesse parte de um filme. Sendo sua aparência tão intensa quanto à voz.

— Mas a Anne não parece gostar do rapaz. Ela nem ao menos quer ficar perto dele.

— Acredita em mim, aposto que com o tempo, vão perceber que se gostam de verdade.

Eu ri. Ele ergueu o olhar para mim e sorriu. O tipo de sorriso que ilumina o rosto inteiro e te faz querer sorrir também.

— É. Quem sabe...

O garoto abriu a boca, mas antes que pudesse contestar, uma mulher se aproximou e o tocou no ombro. Os dois foram para o assento livre ao lado do meu e ele acenou para mim em despedida. Desci na estação seguinte e parei abruptamente quando senti alguém me segurar.

É vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora