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Na sexta-feira, ao meio-dia, a aula de pintura já havia terminado e os alunos retiravam-se da sala. Guardei os materiais de ilustração na mochila e empilhei os livros no braço.

A graduação era a primeira etapa para realizar o sonho que cultivei por muito tempo, o que recompensava todo o esforço para estar ali. Contudo, a saudade que eu sentia de casa e o pensamento constante na saúde do meu pai, me colocavam em uma luta interna diariamente.

No meio de mais um dos meus devaneios, senti o celular vibrar no bolso e o puxei para ver a mensagem.

Espera. Estou quase chegando, perdi o horár...

Foi apenas o que consegui ler até colidir com alguém no corredor. Caí direto no chão e os livros espalharam-se pelos cantos, junto com os do outro aluno.

— Ei, desculpa! — ele levantou com facilidade e estendeu a mão para me ajudar. — Oi, menina — e foi nessa hora que eu o vi. O garoto do ônibus, parado na minha frente.

— Oi — o rapaz recolheu os nossos livros que caíram e os ajeitei mais uma vez nos braços. Meu rosto aqueceu de vergonha.

— Você está bem? — perguntou, aproximando-se.

O cara era alto e usava uma jaqueta jeans escura. Seu rosto era sério e bem marcado. O cabelo preguiçosamente bagunçado, o deixava ainda mais bonito.

— Estou sim. Eu te machuquei?

— Não, de maneira alguma — ele franziu o cenho e notei a confusão que se passava em seu rosto. Uma mistura de incredulidade e preocupação.

De tanto ver comédias românticas, notei que aquele instante seria o mais perto de uma cena clichê que eu chegaria. E ela não era nada romântica. Nem mesmo um pouco.

Eu ri. Surpreso, o garoto ergueu as sobrancelhas. O vi piscar várias vezes até se juntar a mim. O som de sua risada era cativante. As linhas do rosto e a postura se suavizaram quase que de imediato.

— Você faz qual curso? — ele quis saber antes de me devolver o último livro, uma coleção de Claude Monet.

— Artes visuais e o seu?

— Publicidade — o rapaz olhou para o relógio no pulso e coçou o pescoço. — Eu realmente preciso ir a um lugar... Você tá bem mesmo?

Balancei a cabeça em concordância.

— Se cuida então, viu? — ele sorriu e, apressado, desapareceu pelo corredor.

Apanhei o celular para terminar de ler a mensagem e um rasgo na meia calça preta que eu usava chamou minha atenção. O rubor em meu rosto era indisfarçável. Eu só torci para que mais nenhum desastre acontecesse.

Aguardei na entrada do prédio e minha melhor amiga apareceu. A pele escura estampava um tom mais bronzeado que ganhara na viagem de férias com os pais. A ascendência indiana, ligada à avó materna que nasceu em Nova Deli, refletia nos traços do rosto e nos olhos amendoados iguais aos da mãe. O cabelo preto espalhava pelas costas em uma perfeita cascata. Aline Arya Parekh era uma fotógrafa que, com certeza, poderia ser modelo se quisesse.

— Duda! — acenou assim que me viu.

— Parece que não a vejo tem uma eternidade.

— Culpa da grade horária. Só consigo encontrar você assim — um abraço desajeitado foi tudo o que conseguimos, devido à quantidade de coisas que carregávamos — Eu ia te perguntar como foi sua aula, mas pelo visto você se entrega mesmo pela arte, hein? — apontou para o buraco na meia calça que eu tentava disfarçar.

— Engraçadinha.

Atravessamos a universidade em direção à saída e depois, seguimos por caminhos diferentes. Para onde eu ia, um sorriso se formava em meu rosto, sempre que me lembrava do acontecido. Pelo menos, eu não encontraria mais o rapaz. Essa era uma vergonha para apenas um dia.

A livraria Delfim, na qual eu trabalhava, ficava em um estabelecimento rústico ao lado sul da cidade. De tijolos vermelhos, inspirada na era vitoriana, a loja possuía grandes estantes de madeira e um piso de ladrilhos por toda sua extensão.

O espaço acolhedor abrigava um ou outro leitor voraz que permanecia entretido em suas páginas durante a tarde. Era um lugar muito bonito, principalmente quando os raios quentes e brilhantes do sol invadiam as janelas da vitrine, pintando cada obra como se fosse ouro.

Amarrei o avental da loja na cintura e comecei a atender os clientes que entravam. Do outro lado, Ernesto Delfim, dono da livraria, estava sentado próximo ao caixa atento a um número considerável de folhas sobre a mesa.

— Quer saber, acho que vou fazer uma pausa — com um longo suspiro, ele levantou da cadeira e guardou os pedidos para a semana seguinte. — Já volto, está bom?

Confirmei com um aceno e quando o movimento na loja diminuiu, aproveitei para organizar os exemplares que foram deixados nas poltronas. Separei-os pelas categorias e empilhei na ordem correta de volta nas prateleiras.

Não demorou muito para que Ernesto voltasse. Ele trazia em uma das mãos uma caneca de café fumegante e na outra um livro.

— A minha esposa leu esse na Biblioteca Municipal uma vez e sempre fala dele. Acha que ela vai gostar?

— Com certeza — folheei as páginas de Uma Curva no Tempo com cautela. O título em branco sobressaindo na capa azul esverdeada. — É um belo presente. Como não amar?

— Olha, nunca vi alguém gostar tanto de romance, você parece com ela — comentou entre risos. — Já sei que as duas poderiam conversar uma tarde todinha.

Havia algo deslumbrante nas histórias de amor e o fato de que eu poderia encontrá-las, a qualquer momento, nas páginas dos livros.

Eu não podia negar esse sentimento. Algum dia esperava também trazer a mesma emoção através das pinturas. Guardei esse pensamento só para mim e continuei a dispor as obras nas estantes.

No fim do expediente, quando colocava o celular na mochila e me preparava para ir embora, notei a ausência do meu caderno de desenhos. Ao invés de encontrar o sketchbook de capa azul-petróleo, me deparei com um de capa grafite coberto por fotos e anotações nas folhas amarelas.

O caderno dele. Quando eu pensei que nunca mais veria o rapaz, lá estava o pequeno lembrete em minhas mãos provando o contrário.

Eu não fazia ideia de como destrocar os cadernos. Procurei por alguma informação nas primeiras páginas que pudesse ajudar e, no fim, me encontrei lendo aquelas palavras por todo o caminho do metrô até em casa. 

É vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora