Minha terapeuta disse pra eu parar de ser "oh céus, oh vida!", parar de ver o mundo em preto e branco, parar de me comportar como se o mundo fosse feito de trevas, como se nada fosse bom. Claro que ela disse pra eu não virar um hippie idiota que só vê flores e arco-íris, mas tentar ver o lado bom da vida.
Claro que ela não disse do jeito podre e insensível que eu costumo empregar às palavras, mas daquele jeito dela, contando um causo de um amigo de uma amiga de uma prima distante de Santos. A partir daí resolvi começar a trabalhar isso em mim. "Coitado, um jovem que teve o coração partido pela primeira vez há poucos meses", pensei comigo, "voltarei pela primeira vez a ser pleno de novo, finalmente?".
Até comecei bem, contando que comecei fazendo exatamente o contrário. Comecei pelo transporte coletivo de São Paulo, como ele tinha evoluído, com ar condicionado e wi-fi, corredores e toda aquela propaganda do Haddad. Mas pouco durou a reflexão pro cheiro nojento do Rio Tietê dominar o ambiente, e aquela vista suja estragar o meu humor e me fazer prestar atenção nas pessoas estressadas, cansadas e mal-educadas que superlotavam o ônibus. Pensei nos moradores de rua e em como eles estariam bem de vida se não houvesse o capitalismo no caminho do trabalhador. Comecei a imaginar o sangue de todos os torturadores, burgueses, fascistas e espiões imperialistas manchando o muro do Palácio do Planalto, compondo a mais linda obra-prima de sangue sobre muro branco, como óleo sobre tela.
Bem, a partir daí já é perceptível a incrível e extraordinária falha do meu novo método hedonista de ver o mundo. Mas não tinha me dado por vencido, cheguei em casa, cumprimentei minha família e meus cachorros e fui pro quarto. Não durou muito até eu sentir um cheiro acre de urina, olhar no chão, ao lado das minhas velhas guitarras sem cordas, uma grande poça de urina, muito provavelmente de cachorro, pois tenho a bexiga muito boa. A partir daí, tudo o que veio na minha cabeça foi o quanto o longo pelo do meu cachorro fede quando tá molhado, o tempo que passei sem por cordas em minhas guitarras, o fato de o tempo que os meus familiares passam em paz não é nem metade do tempo que eles passam estressados, brigando ou reclamando da vida.
Depois disso resolvi deixar as coisas no lugar, o meu aborrecimento de um velho de 70 anos na linha de frente do meu olhar, o cheiro do meu cachorro, a vista suja da Marginal Tietê, as minhas recorrentes crises de autoestima, acompanhadas das minhas recorrentes crises irracionais de ciúmes, minhas paixões mal-curadas nos seus devidos lugares, minhas bombas e balas ao capitalismo. Me conformei com a minha psiquê problemática.
Mas decidi arranjar um novo bicho de estimação. Dois, na verdade, quero dois ratos. Não sei porque, nem pra quê. Mas acredito que isso vá me ajudar a me organizar pra alguma coisa.
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Cicatriz - Pele, Colágeno, Sangue e Suor.
PoetryCorre, apenas! Remonta. Traz tudo aquilo de volta, como uma fênix narcisista e embriagada...