CAPÍTULO TRÊS

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Lá fora, o sol descia para o poente

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Lá fora, o sol descia para o poente.

E o silêncio era algo como estar nu no meio do espaço que tinha pressão e sem qualquer gravidade que esmagava seus corpos.
- Minha mãe fora uma pessoa muito religiosa. - disse Anna, de súbito, partindo um silêncio que mais parecia uma camada de ar gordurosa e quase sufocante.- Meu pai também o fora, mas toda essa religiosidade acabara quando mamãe morreu. - Anna volta a calar-se por alguns instantes como se revivesse aqueles dias de um passado já muito esquecido. E agora estava exposto como uma fratura.
- Foi câncer. Papai fizera tudo que seu bolso poderia fazer, mas mesmo sendo um empresário bem sucedido não conseguira salvá-la. Papai ficara revoltado. Deixou-se dominar pela bebida. Largou a religiosidade. Esquecera sua filha de nove anos e a de sete, Beatriz. - ela pausa ponderando e fixa seus olhos nos olhos de Marcelo. - Ele só lembrava quando precisava usar a filha mais velha. Quase toda noite. Depois de encher a cara. Ás vezes, duas vezes na noite.
Ficou em silêncio. Um silêncio que tinha a sensação de estar no fundo de um lago. Escuro e muito sujo. Incomodado, Marcelo apenas baixou os olhos.
- Papai queimou tudo que poderia ter alguma conexão religiosa que trouxesse aquele passado religioso com sua falecida esposa. - continua ela. - Tudo que relacionasse a Deus, papai queimava e ou proibira severamente. As missas de domingo. A bíblia. Imagens de Jesus. Eu tinha o menino Jesus. Papai destruiu com o martelo. Não houve mais natais. Nem Páscoa. Mal comemorava o meu e o aniversário da minha irmã. Apenas três datas eram especiais para ele. O aniversário da sua amada esposa, Laura. A data de casamento deles. E o dia em que ela morreu. Eu e Beatriz não fizemos catecismo nem crisma. E quando o padre da igreja que frequentávamos bateu à porta, meu pai o expulsou a bofetadas. Ele odiava a Deus. Ele culpava Deus. Deus era o motivo de sua desgraça. Deus roubara a vida de sua amada. Deus era um assassino. Deus era o maior fodido.

Pausa.

Ela ergue os olhos para Marcelo.

- Ele passou a ter como seu inimigo Deus. E acabou arrumando também inimigos para ele mesmo. A igreja. Minha mãe não foi enterrada no cemitério da cidade por causa do ódio de meu pai por Deus. Ele queria que colocassem na lápide "Amada pela família. Odiada por Deus". Que absurdo, não? - ela sorri e balança a cabeça. - Isso gerou uma guerra com a religião. No fim, papai acabou excomungado pela igreja e mamãe foi enterrada em nosso sítio. Sem um padre. Sem qualquer cerimônia religiosa. Nem missa do sétimo dia. Mas, aquela lápide com aquelas palavras fora colocada.
Marcelo naquele instante pensou em dizer alguma coisa, mas desistiu.
Seja lá o que for que ela estava lhe confidenciando era melhor não falar nada. E, no entanto, com seus próprios pensamentos e opiniões descobriu o motivo de Anna ter se voltado para Deus novamente. Para Marcelo era uma vingança.
Uma vingança contra seu pai. Um homem que se voltou contra Deus porque perdera a esposa. E que se esqueceu das filhas. Duas crianças que precisavam mais do que nunca do pai naquele momento.
Toda a raiva dela. Toda a dor pela vida que tivera que levar era culpa do pai por culpar a Deus por ter levado a esposa e mãe querida e deixado duas filhas. Agora era uma mulher com a fé restabelecida e usaria tudo contra a memória de um pai rigoroso demais contra Deus.
- Ele só não destruiu o terço que minha mãe sempre carregava. - volta a falar Anna. - Não sei quando ou em que momento, mas Beatriz o escondeu. Era o nosso segredo. Tínhamos uma parte da mamãe com a gente. Sentíamos protegidas. Beatriz orava todas as noites com aquele terço. Virou uma obsessão para ela. Dá para imaginar uma criança de seis anos fissurada com um terço e a fé?
- E cadê esse terço? - pergunta o amigo.
As sobrancelhas dela arqueiam junto com um olhar de interrogação. Pensa a respeito. E suas feições mudam. A cara fecha. A imagem daquele terço a aborrece. Não quer pensar e nem falar disso.
- Agora estamos aqui - Anna olhou para Marcelo. - E Deus está nos mostrando que precisamos encarar e vencer nossos medos.
Ela apontou um dedo na direção da porta.
- Deus está provando minha fé contra Àquilo lá fora, Marcelo! Foi o que rolou com Jó. Ele era um homem justo e honesto. E mesmo assim Satanás apostou com Deus a fé de Jó. Ele perdeu tudo e ainda ficou coberto de úlceras. Mas nunca blasfemou contra o Criador. Sua fé permaneceu intacta. E Deus retribuiu, em dobro, tudo o que havia perdido.
Marcelo apenas ficou escutando.
- Deus está nos mostrando que Àquilo é meu pai. - disse Anna. - Deus está mostrando que Àquilo é Jorge, Marcelo! Precisamos manter nossa fé intacta!
Ela parou e encarou Marcelo por alguns segundos.
- O que foi? - perguntou ele desconfiado do modo como ela o encarava.
- Você acredita que sou louca, não é?
- Claro que não!
- CALA A BOCA! - berrou ela de repente fazendo Marcelo se sobressaltar.
- O que há com você? - os olhos dele se arregalaram incrédulos.
- Você acredita que eu enlouqueci! - aquele tom de voz dela fez Marcelo se lembrar de uma cobra falando. - Sei que pensa assim! Não foi culpa minha! Foi dele! E dela!
- O que está dizendo? Não é nada disso! - disse ele. - Estou assustado com toda essa merda que está acontecendo comigo e com você! Estou assustado com o que aconteceu com nossos amigos! Eu quero ir para casa! Não estou mais suportando isso!
- Então pare de ser um desmiolado e acorde para a real questão de tudo isso, droga!
Marcelo não gostou do tom dela e a fuzilou com os olhos. Teve vontade de esganá-la.
- Então me diga o que é de verdade? - ele cruzou os braços.
- É a vontade de Deus!
- Vontade de Deus?
Anna não respondeu. Seus olhos, o desafiava.
- Você acredita que seja lá o que for que esteja lá fora - Marcelo apontou um dedo todo sujo na direção daquela porta velha. - e o que tenha pegado e matado nossos amigos seja uma vontade de Deus?
Anna o encarava com raiva. E Marcelo não tirou os olhos vidrados dos dela.
- Estamos fazendo sim - disse ela lentamente. - Deus nos...
- Deus? - interrompe num tom de voz ríspida Marcelo. - Aonde, Anna? Isto não é uma cruzada religiosa! Você sabe disso! Porra! Só falta você me dizer que tenho que fazer um crucifixo com algum pedaço de madeira daqui e sair gritando "Pelo poder de Cristo, eu te repreendo"!
- Sim, talvez, você tenha razão - disse ela friamente e em sua voz percebeu um irônico desafio.
- Não podemos ficar aqui de braços cruzados olhando por um buraco na porta.
- Então saia daqui. - disse calmamente em tom complemente despreocupada. Ela meneia a cabeça na direção da porta. - Abra essa porta e vá. E veja até onde consegue chegar com essa sua fé.
Marcelo desviou os olhos para a fenda na porta. Lembrou-se da Lídia sendo arrastada. Todos falavam ao mesmo tempo antes disso acontecer. Lucas estava gritando. Anna estava gritando com ele. Brad pede que todos se acalmem. A porta da capela estava aberta. Marcelo perguntava o que estava acontecendo. A confusão instalada. Foi quando Brad berrou para que todos ficassem quietos que notaram que Lídia não estava ali na discussão. Ela estava do lado de fora. De costas para eles. Olhando para o canavial. Falando com alguém. Ela balançando a cabeça, concordando com algo. Todos estão quietos. Lídia olha por cima do ombro para eles. Então... ela é puxada. Foi rápido demais para ver o que puxara ela. Marcelo pensa a respeito disso.
Lembrou-se de Brad alucinado pela forma como sua namorada foi levada. De como aquele tênis dela tornara-se para ele algo tão valioso quanto à vida de seus amigos. A loucura que inundou aquela capela quando ao ouvir a voz de Lídia sofrendo alguma tortura inimaginável por Àquilo que a levara, Brad começou a arrastar Anna para fora da capela oferecendo uma troca. Mas, no momento em que Brad colocou os pés para fora a coisa que vivia naquele canavial o pegou.
E Lucas? Era o mais próximo e chegou a ver algo lá. Chegou a ver o que pegou Brad. E não falou com mais ninguém. Falava de um bebê que chorava. De um berço montado e vazio em um quarto. Um bebê que nunca houve. Porque não tinha nascido. E a mãe o culpava por isso. De ter matado o irmão gêmeo no ventre. E agora ela está lá fora com um bebê no colo. Chamando Lucas. Não a mãe, mas o bebê. Céus, que bebê é esse ali fora que nem chegou a nascer e que consegue falar? "Irmão vem para fora. Ainda podemos brincar." Choramingando, Lucas pede perdão para esse bebê lá fora. E no fim, Lucas também fora pego, pois acreditava que Àquilo que os perseguia era na verdade seu irmão que nunca nascera e sua mãe querendo pegá-lo. Por causa de seu egoísmo ao querer nascer e não deixar seu irmão gêmeo vir ao mundo.
Foi assim com eles.
Atacando as fraquezas deles.
Não podia deixar isso acontecer com ele. Não podia deixar esse medo dominá-lo. O medo era sua fraqueza. O medo era uma caixinha pequena e apertada cheia de espinhos venenosos. Ele não iria cair dentro dessa caixinha. Não mesmo.
Marcelo, então, sentou com as pernas cruzadas e fechou os olhos e ficou assim sem falar mais nada.
Anna achava que ele estava rezando.

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