CAPÍTULO CINCO

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	A noite despencara com uma fina camada de friagem

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A noite despencara com uma fina camada de friagem. Ali estava tão escuro que deixou Anna ainda mais assustada. Ela estava sentada com as pernas dobradas à altura de seus seios recostada contra a parede, à cabeça virada para trás e os olhos fechados. Ali, Anna viu que poderia chorar em silêncio sem ser atacada pelo os olhos especuladores de Marcelo. Estava à beira das lágrimas, mas conseguiu controlar-se porque o que iria sair não seria silencioso e sim, histérico.
Ventava lá fora. E o vento era gelado.
As folhas verdes da cana-de-açúcar farfalhavam ruidosamente. Por vezes, os ventos que sopravam entre todas aquelas canas produziam sons semelhantes às vozes. E o som era carregado de uma atmosfera sinistra e assombrosa. Anna e Marcelo acometeram em arrepios.
O tempo havia mudado. As nuvens lá fora eram tão negras e carregadas de chuva que pareciam que não se sustentariam no céu e cairiam na terra. O vento pareceu aumentar. O frio também. O escuro intensificou-se e Anna pareceu apavorar-se ainda mais. Marcelo ficou inquieto e seriamente preocupado com a questão se as estruturas daquelas ruínas resistiriam ao que parecia ser uma tempestade com violentos ventos. Ele achava que não.
Os raios começaram a riscar o céu negro e suas explosões de luz trouxeram um pouco de claridade dentro da capela. Então vieram também os trovões e seus poderosos estrondos.
Naquele momento, ela sentiu-se perdidamente solitária. Estava sentindo seus pensamentos incharem como bolas de espinhos em sua mente. E cada uma dessas bolas rolava com a mesma força e som de um trovão. Lídia se fora. Lucas se fora. Brad se fora. Ela começa a choramingar. Marcelo está ali, mas ela sabe que não pode contar com ele. Marcelo está naquele momento mudo para o mundo exterior, aprisionado em seus próprios pensamentos e sentimentos.
E foi quando, Anna pensando nessas coisas, que aconteceu o que acreditava ser impossível acontecer.
Ela sentiu um braço passando-lhe pelos ombros. Anna deu um estremecido suspiro, mas de maneira suave e sensual. Os olhos fecharam sonhadoramente. Ela mordia levemente seu lábio inferior. Os pelos na nuca arrepiaram-se. E naquela escuridão parecia uma fantasia sendo realizada de forma mais exótica e prazerosa. Então, houve um momento de enorme confusão em sua cabeça e em seus sentimentos. Quase expulsou esse braço num safanão como uma defesa contra seus próprios medos e desejos. A voz de Marcelo chegou ao seu ouvido esquerdo trazendo a ela uma sensação de quentes arrepios. Ela sentiu-se úmida.
— Está se sentindo bem?
Anna tentou falar, mas parecia ter esquecido o que era isso, era como se o português tivesse sido apagado de sua mente. Sentiu o cheiro dele e isso provocou uma torturante agitação dentro de si – uma leoa prestes a romper as correntes. Entretanto, uma parte dela se voltava para seu propósito. A fé em e com Deus. Aquela era a parte de que necessitava se pretendia continuar a viver.
A imagem do crucifixo do terço da mãe balançando como um pêndulo em sua mente.
— Anna? — a voz de Marcelo voltou penetrando macio e quente. — Você está bem?
— Oh, sim! — voltou a dizer com voz baixa e sufocada, de repente, ela totalmente atrapalhada e envergonhada como se tivesse sido apanhada com esses pensamentos secretos, íntimos. Sentiu se nua no meio de um estádio lotado.
— Está tudo bem? — a voz dele tornou-se mais mansa e ela parecia estar dentro de algum vulcão em atividade. Oh, meu Deus!, sua mente gritou. Ele está me... me tocando! Senhor Deus Todo-Poderoso! Eu quero esse toque! Perdão! E não quero esse toque! Pai-nosso que estais no céu! Santificado seja vosso nome! Venha nós ao vosso reino! Seja feita a vossa vontade... assim... na Terra como no Céu...
Então sua mente travou quando Marcelo pareceu juntar-se mais ao lado de seu corpo frio de medo e trêmulo, mas a carne interior estava uma fornalha.
E algo surgiu em sua memória. Nítida. Algo perturbador em sua infância. A voz mole e embriagada do seu pai dizendo: “Vem dormir com o papai, querida”.
Anna afastou o braço que a enlaçava e empurrou com toda força que seu corpo feminino dispunha naquele momento. Levantou num salto, afastando-se aos tropeços e quase caiu.
— NÃO... – começou num quase sussurro e logo se intensificou na forma de uma explosão. — NÃO! NÃO PODEMOS! — o desespero tomou conta de seu coração e Anna parecia uma louca alucinada. Andou de um lado para o outro se abraçando de maneira protetora, chorando. Então, parou bruscamente, encarou Marcelo, mergulhada numa expressão de agonia, medo e apontou um dedo fino e comprido como uma agulha.
— Você... — começou, mas pareceu que sua voz havia acabado todo o estoque de fala. Ela abriu e fechou a boca. Parecia um mudo tentando falar. E quando sua voz finalmente saiu foi como a buzina de um trem. — VOCÊ! SEU FILHO DA PUTA! NUNCA MAIS ME TOQUE! DEUS CASTIGARÁ SUAS MÃOS COM CHAGAS!
Marcelo estava emudecido de espanto, endurecido como uma pedra de mármore.
Ela enlouqueceu!, foi a única coisa que sua mente pode pensar já que ficara desconexa e vazia.
— O que há com você? — conseguiu soltar e sua voz detonava uma mistura de raiva e uma surpresa assustadora. — Você... está... — deu um sorriso de canto inconformado com o que presenciava.
O rosto dela estava muito vermelho. Aquela imagem fez Marcelo pensar naqueles desenhos animados que gostava de assistir quando criança onde a cabeça ficava vermelha, inchando feito um balão, apitando como uma chaleira e explodia.
— NÃO ME TOQUE NUNCA MAIS! — Anna estava histérica, completamente fora de controle. E tão de repente fora, que chegou a assustar Marcelo com o pensamento de que estava tendo alguma espécie de ataque epilético, ela deixou-se despencar ao chão. Cabisbaixa, os cabelos emaranhados e sujos caídos ao rosto, ela começou a chorar. Não começou como um choro qualquer, Anna parecia urrar, os dentes cerrados. Era choro cheio de raiva contida. Foi aí que soltou toda essa raiva num grito. Marcelo deu um pulo pra trás de surpresa e susto. Depois do grito, ela voltou a chorar com toda força. Vagarosamente, como se fosse uma pessoa muito idosa para isso, ela uniu as mãos trêmulas.
— Pai-nosso que estais no céu! — começou a rezar. — Santificado seja vosso nome! Venha nós ao vosso reino! Seja feita a vossa vontade... assim... na Terra como no Céu.. — ela pausou apenas alguns segundos para um momento de retomar o fôlego e continuou fervorosa e desesperada: — O pão nosso de cada dia nos daí hoje! Perdoai as nossas ofensas! Assim como nos perdoamos a quem nos têm ofendidos! E não nos deixeis cair em tentação! Da tentação! Da tentação! Mas livrai-nos do mal! Livrai-nos! Livrai-nos!
Marcelo permaneceu imóvel, olhando estupefato para ela. Mas aquilo começou atingi-lo de outra maneira. Aquilo fez algo crescer dentro de sua cabeça, contraindo todo seu sistema nervoso. Percorrendo num comichão até suas mãos. Ele queria desviar os olhos dela, afastar para qualquer lugar dentro daquela capela que não seja Anna rezando daquela maneira. No entanto, seus olhos estavam presos àquela visão dela rezando e rezando. Marcelo fazia um esforço louco para não olhar para ela senão cometeria algo imperdoável. Mas, Anna Ferreira, não parava de rezar. Marcelo caminhou em direção a ela. Todo o desejo que havia por ela se fora, agora só havia raiva. Eram apenas quatro curtos passos, mas de alguma forma parecia uma distância de um quilometro por cada passo dado. Anna parecia inalcançável. Ele parecia tão leve que parecia que a atmosfera da capela era sem gravidade. Porém, Marcelo a alcançou.
— ...ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo... — rezava quando Marcelo a agarrou nos ombros e chacoalhou como se fosse uma boneca de pano.
— PÁRA COM ISSO! — berrou ele no rosto dela. — VOCÊ ESTÁ ME DEIXANDO LOUCO, PORRA! PÁRA! PÁRA COM ESSA REZA!
— ... a tua vara e o teu cajado me consolam... — continuou Anna alucinadamente, as mãos unidas, quase coladas e sendo chacoalhada. —... Preparas uma mesa perante mim na presen...
E foi quando o som estralado de uma bofetada encheu aquela capela arruinada. O som foi acompanhado pelo clarão de um raio, seguido pelo estouro quase ensurdecedor de um violento trovão. O silêncio chegou carregado de uma ventarola fria e uma acinzentada escuridão sombria.
Os olhos de Marcelo encontraram os de Anna. Olhos tão carregados e pesados quanto aquelas nuvens. A acusação, a raiva, angustia e todos os sentimentos de remorsos e dor estavam ali. Lentamente, os olhos de Marcelo desviaram-se para sua própria mão. A mão direita que enchera a face esquerda dela. Estava ardendo. Estava pesada. A sensação de calor naquela mão não foi nada boa para ele. Aquele era o calor da culpa.
Então, por alguns instantes, tudo pareceu parar. Como se o tempo houvesse sido congelado. E foi aí que Anna deu um aterrorizante grito. O coração de Marcelo quase explodiu de susto e medo.
Anna começou a chorar e gritar ao mesmo. Não era bem um grito, mais urro selvagem.
Marcelo afastou-se passo a passo, olhando para sua mão direita e depois para Anna, voltando em seguida a olhar para sua mão novamente. Assombrado e contraído de remorso, ele deixou-se cair sentado no chão duro e sujo. Ficou ali, tremendo, e então, começou a chorar também.
E começou a chover.

A CAPELAOnde histórias criam vida. Descubra agora