Do senhor e do Escravo

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Do Senhor e do Escravo
Após ter indicado quais são as partes que constituem o Estado, devemos, já que os Estados são formados de famílias, falar primeiro do governo doméstico.
Uma família completamente organizada compõe-se de escravos e de pessoas livres. Mas como só se conhece a natureza de um todo pela análise de suas partes integrantes, sem exceção das menores, e como as partes primitivas e mais simples da família são o senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pai e os filhos, convém examinar quais devem ser as funções e a condição de cada uma destas três partes.
Chamaremos despotismo o poder do senhor sobre o escravo; marital, o do marido sobre a mulher; paternal, o do pai sobre os filhos (dois poderes para os quais o grego não tem substantivos).
Alguns fazem também entrar no econômico4 a parte relativa aos bens que compõem o patrimônio das famílias e aos meios de adquiri-los. Trata-se até, segundo outros, do elemento principal.
O Poder do Senhor ou "Despotismo"
Para conhecer o que é indispensável à composição da família, comecemos por falar do poder despótico e da escravidão, e vejamos senão seria possível encontrar sobre esta matéria algo mais satisfatório do que já foi dito até o presente.
Uns, de fato, como já vimos, confundem todos os poderes e compreendem, num só e único sistema, o poder do mestre e a realeza, o governo republicano e a administração da economia; outros consideram que o poder senhorial não tem nenhum fundamento na natureza e pretendem que esta nos criou a todos livres, e a escravidão só foi introduzida pela lei do mais forte e é, por si mesma, injusta como um puro efeito da violência.
Quanto à economia, observo que é impossível viver comodamente, ou mesmo simplesmente viver, sem o necessário. Portanto, como os bens fazem parte da casa, os meios de adquiri-los também fazem parte do governo doméstico; e, assim como nenhuma das artes que têm um objeto preciso e determinado realiza sua obra sem seus instrumentos próprios, a economia também precisa deles para chegar ao seu objetivo.
Existem dois tipos de instrumentos: uns inanimados, outros animados.
Assim é que, para a navegação, o leme é o instrumento inanimado e o piloto, o instrumento animado. Em todas as artes, o trabalhador é uma espécie de instrumento.
Um bem é um instrumento da existência; as propriedades são uma reunião de instrumentos e o escravo, uma propriedade instrumental animada, como um agente preposto a todos os outros meios. Se cada instrumento pudesse executar por si mesmo a vontade ou a intenção do agente, como faziam, dizem, as marionetes de Dédalo ou os tripés de Vulcano, que vinham por si mesmos, segundo Homero, aos combates dos deuses, se a lançadeira tecesse sozinha a tela, se
o arco tirasse sozinho de uma cítara o som desejado, os arquitetos não mais precisariam de operários, nem os mestres de escravos.
Chama-se "instrumento" o que realiza o efeito, e "propriedade doméstica" o que ele produz. O tear, por exemplo, e o torno, além do exercício que nos proporciona seu uso, fornecem-nos ainda pano e camas ao passo que o pano e a cama que eles nos produzem se imitam ao nosso simples uso.
Há também diferença entre "fazer" e "agir" e, como ambos precisam de instrumentos, deve haver entre seus instrumentos a mesma diferença. A vida consiste no uso, não na produção. O servidor é o ministro da ação chamam-no propriedade da casa, como parte dela.
A coisa possuída está para o possuidor assim como a parte está para o todo ora, a parte não é somente distinta do todo, ela lhe pertence o mesmo ocorre com a coisa possuída em relação ao possuidor. O senhor não é senão o proprietário de seu escravo, mas não lhe pertence o escravo, pelo contrário, não somente é destinado ao uso do senhor, como também dele é parte. Isto basta para dar uma idéia da escravidão e para fazer conhecer esta condição.
O homem que, por natureza, não pertence a si mesmo, mas a um outro, é escravo por natureza: é uma posse e um instrumento para agir separadamente e sob as ordens de seu senhor.
A Servidão Natural
Mas faz a natureza ou não de um homem um escravo" e justa e útil a escravidão ou é contra a natureza" e isto que devemos examinar agora.
O fato e a experiência, tanto quanto a razão, nos conduzirão aqui ao conhecimento do direito.
Não é apenas necessário, mas também vantajoso que haja mando por um lado e obediência por outro e todos os seres, desde o primeiro instante do nascimento, são, por assim dizer, marcados pela natureza, uns para comandar, outros para obedecer.
Entre eles, há várias espécies de superiores ou de súditos, e o mando é tanto mais nobre quanto mais elevado é o próprio súdito. Assim, mais vale comandar homens do que animais. O que se executa mediante melhores agentes é sempre mais bem executado, partindo então a execução do mesmo princípio que o comando ao passo que, quando aquele que manda e aquele que obedece são de espécies diferentes, cada um sacrifica algo de seu.
Em tudo o que é composto de várias partes, quer contínuas, quer disjuntas, mas tendentes a um fim comum, sempre notamos uma parte eminente à qual as outras estão subordinadas, e isso não apenas nas coisas animadas, mas também nas que não o são, tais como os objetos suscetíveis de harmonia. Mas, aqui, me afastarei por certo de meu objetivo.
O animal compõe-se primeiro de uma alma, depois de um corpo: a primeira, por sua natureza, comanda e o segundo obedece. Digo "por sua natureza", pois é preciso considerar o mais perfeito como tendo emanado dela, e não o que é degradado e sujeito à corrupção. O homem, segundo a natureza, é aquele que é bem constituído de alma e de corpo. Se nas coisas viciosas e depravadas o corpo não raro parece comandar a alma, é certamente por erro e contra a natureza.
e preciso, portanto, como dissemos, considerar nos seres animados a autoridade do senhor e a do magistrado: a primeira é a da alma sobre o corpo a segunda exerce sobre as paixões humanas o poder da razão. e claro que o comando, nestas duas espécies, é conforme à natureza, assim como ao interesse de todas as partes, e a igualdade ou a alternância seriam muito nocivas a ambas.
O mesmo ocorre com o homem relativamente aos outros animais, tanto os que se domesticam quanto os que permanecem selvagens, a pior das duas espécies. Para eles é preferível obedecer ao homem seu governo é-lhes salutar.
A natureza ainda subordinou um dos dois animais ao outro. Em todas as espécies, o macho é evidentemente superior à fêmea: a espécie humana não é exceção.
Assim, em toda parte onde se observa a mesma distância que há entre a alma e o corpo, entre
o homem e o animal, existem as mesmas relações isto é, todos os que não têm nada melhor para nos oferecer do que o uso de seus corpos e de seus membros são condenados pela natureza à escravidão. Para eles, é melhor servirem do que serem entregues a si mesmos. Numa palavra, é naturalmente escravo aquele que tem tão pouca alma e poucos meios que resolve depender de outrem. Tais são os que só têm instinto, vale dizer, que percebem muito bem a razão nos outros, mas que não fazem por si mesmos uso dela. Toda a diferença entre eles e os animais é que estes não participam de modo algum da razão, nem mesmo têm o sentimento dela e só obedecem a suas sensações. Ademais, o uso dos escravos e dos animais é mais ou menos o mesmo e tiram-se deles os mesmos serviços para as necessidades da vida.
A natureza, por assim dizer, imprimiu a liberdade e a servidão até nos hábitos corporais. Vemos corpos robustos talhados especialmente para carregar fardos e outros usos igualmente necessários outros, pelo contrário, mais disciplinados, mas também mais esguios e incapazes de tais trabalhos, são bons apenas para a vida política, isto é, para os exercícios da paz e da guerra. Ocorre muitas vezes, porém, o contrário: brutos têm a forma exterior da liberdade e outros, sem aparentar, só têm a alma de livre.
Limitando-nos aos aspectos materiais, como no caso das estátuas dos deuses, não hesitamos em acreditar que os indivíduos inferiores devem ser submissos. Se isto é verdade quando se trata do corpo, por mais forte razão devemos di-lo da alma mas a beleza de um não é tão fácil de discernir quanto a da outra.

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