Bibidi Babidi Blood

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Os números no calendário denunciavam o fim de outubro. Bom, quase. Era o ultimo dia de outubro e os gatos pretos perambulavam pelas calçadas. Abóboras enfeitavam os jardins das casas, e seus olhos ocos não afastavam as crianças das campainhas. Moças solteiras gritavam ao terem seus pés varridos pelas senhoras de meia idade, que se divertiam com a brincadeira. Supersticiosos evitavam escadas, principalmente passar em baixo delas, de modo que todos os elevadores se encontravam lotados. Ao menos onde continham elevadores. Não era o tipo de luxo que se tinha em cidade pequena. E é dentro de um deles que a nossa história começa.

As paredes metalizadas escondem Cíntia, uma garota de estatura mediana, cabelos loiros ostentados em um corte pixie¹ moderno, fone no volume máximo, e uma língua afiadíssima. Seu rosto continha traços angelicais, entretanto, a carranca que se formava nele afastava qualquer possível chance de conversa entre as pessoas na caixinha apertada. Mas nem sempre fora assim. Quando seus pais se separaram ela tinha seis anos e ao ser questionada escolheu morar com o pai, que iria morar em uma cidade um pouco maior logo ao lado. Mas eles nunca foram uma família feliz então não foi um grande choque para a menininha – ela continuava acreditando no Papai Noel. Quatro anos depois seu pai se casou e ela ganhou duas irmãs (postiças) mais velhas. Seis anos se passaram e seu pai descobriu o câncer, falecendo pouco tempo depois. Ficou vivo até sua garotinha fazer dezoito. Tinha que morrer com a certeza de que havia deixado sozinha uma mulher crescida. E no seu último pulsar, sentiu que tinha feito um bom trabalho.

A sua madrasta era um poço de elegância com pura maldade. Igualmente se podia dizer das irmãs postiças. Cíntia desejava arranca-las de sua vida o mais rápido possível. Estava cansada de passar seus últimos anos sendo escrava e, agora que estava lidando melhor com a falta do pai, procuraria um pequeno apartamento que seu salário cobrisse. Ou voltaria a morar com a mãe.

Seus olhos flutuaram para o painel do elevador quando ouviu o sinal agudo indicando que as pessoas poderiam sair. Um tumulto se fez, e rapidamente se dissolveu, deixando Cíntia a mercê do silêncio. As portas rangeram e, lentamente, começaram a se fechar, como se pedindo permissão para tal ato, mas antes que pudessem completar o movimento, uma mão se faz presente, despertando o sensor do elevador e abrindo as portas abruptamente. Ao ver o cabelo bagunçado do garoto do 13-B, Cíntia rola os olhos e aumenta um pouco mais o volume da música. As portas se fecham e os números no painel mudam, até que então, o elevador dá um solavanco agressivo, impulsionando os jovens para frente. Em questão de segundos as luzes se apagam e tudo que se pode ouvir é o coração do garoto e a música da menina. Eles se encaram e Cíntia examina as paredes metálicas com o olhar. "Tudo menos isso", ela pensa. A ideia de estar presa em um elevador já era ruim o suficiente, mas com um desconhecido poderia tornar as coisas muito piores. Ela podia sentir o desconforto.

– Será que a queda de energia foi geral? – ele diz, quebrando o silêncio.

– Geral ou não, o socorro não virá tão cedo. – Cíntia pega o celular no bolso e desliza até sentar no chão do elevador.

– Você é sempre tão pessimista assim? – retruca o garoto. 

– Realista. 

Cíntia voltou seus olhos para o pequeno aparelho em suas mãos e a claridade se fez presente. Não havia sinal, e ela se contentou com uns jogos offline que havia baixado uns dias atras. O menino sentou- se um pouco distante e colocou a pequena bolsa que carregava no colo, tamborilando seus dedos na mesma, em um ritmo descompassado. O tempo parecia não passar e ambos estavam ligeiramente entediados. 

  – Meu nome é Eric, e você deve ser Cíntia do... 16-D, certo?– ele disse, estendendo a mão e esperando por algum sinal de vida da garota a sua frente. Não conseguindo mais do que um olhar desinteressado em resposta, ele recolhe a mão e continua – Suas irmãs são meio... peculiares. 

  – Adjetivo meio leve – diz a garota, ainda sem tirar os olhos do celular. Apesar de não se importar com o rumo da conversa, Eric conseguiu deixa-la intrigada. Como poderia saber tanto da sua vida se moravam em blocos separados e ela mal saia de casa?

Enquanto ele ia chamando cada vez mais a atenção de Cíntia, do lado de fora o sol começava a se por e as crianças colocavam suas fantasias pela última vez. Algumas decorações se soltavam das casas devido ao forte vento e os mercados estavam lotados de pessoas comprando doces. Afinal, ninguém quer irritar uma criança no último dia de halloween, algumas delas são capazes de brincadeiras bem pesadas. Então a noite se aproximava e o elevador continuava estagnado no mesmo local, iluminado apenas pela luz do celular de Cíntia. O aparelho em suas mãos apitou. Dez por cento de bateria. O relógio marcava onze e meia e ela se assustou. Mal notara o tempo passando e nada de tirarem eles de lá. 

– Então, tem aproveitado o halloween? - ele diz, seus olhos brilham e o denunciam como um amante da noite assombrada.

– Odeio o hallowen. – Cíntia percebe a cara desapontada do garoto, e se autocorrige querendo amenizar a situação que criou – Quero dizer, não me leve a mal, mas, tudo é muito falso.

– Wow, mas há muita verdade. É a noite dos mortos. Isso é real. – Ele lança um olhar provocador para ela, acompanhado de um sorriso torto – Você acha que é um mero acaso estarmos aqui?

– Oh não, não é um acaso. – Cíntia se diverte – Estou trancada aqui para comer menos. Gorda de mais para roubar doces das crianças. É o destino se vingando.

– Então que tal algo mais light? Não quero que desmaie de fome na minha frente. – Eric tateia por dentro da bolsa e retira uma grande maçã vermelha. 

Cíntia nunca vira tamanha fruta e seus olhos se alargaram, assim como o seu sorriso. Como poderia ser tão engraçado e divertido? Teria o achado idiota tempos atrás, mas hoje, parecia alguém perfeito para fazê-la ficar na cidade. Então ela estende a mão. As unhas pretas em contraste com o vermelho vivo. Ela agradece e abre a boca lentamente, sonhando com a mordida. De inicio a maçã lhe parece suculenta e ela fecha os olhos saboreando-a. De repente o elevador gira e os jovens se colocam de pé. Cíntia se sente um pouco tonta e maçã se torna preta na sua mão e amarga em sua boca. Não consegue mais ver o garoto, mas ouve sua risada rouca ao fundo. Está muito tonta, os sinos da igreja local tocam, indicando a meia noite, e o elevador para. Ela olha para baixo, está envolta por um vestido azul bebê e sente seus pés tocarem algo gelado. Ao levantar o vestido observa o sapatinho transparente como gelo. "Puro cristal, devo estar sonhando", pensa. Mas então nota Eric vestido de príncipe ao seu lado. 

  – Acredita na magia do halloween agora? - ele diz, então as portas se abrem e o elevador se encontra no meio da rua. Há pessoas gritando por todos os lados, prédios destruídos, casas em chamas. Uma abobora está logo a frente e ela se retorce e contorce até saírem peças de ferro do seu interior. Ela cresce se tornando uma carruagem com olhos assustadores e um sorriso doentio aparece no rosto de Eric. 

– Foi você? – ela diz com raiva, empurrando-o – MAS QUE MERDA! RESPONDA! 

Ele estende a mão mas Cíntia a retira, então ele a toma a força e a puxa para fora do elevador. Ao pisar no chão o sapatinho se quebra e ela urra de dor. Vidro nunca será cristal. Os cacos machucam seu pé e um rastro de sangue se faz atrás dela. Ele continua puxando-a para dentro da "carruagem" e ao se sentar um cinto se forma ao redor de sua cintura. Então ela se debate e grita por socorro até que ouve um grito conhecido: suas irmãs. 

– De nada, minha princesa. 

Cíntia olha as irmãs pela janela da carruagem, ambas estão se debatendo no chão e uma sombra se posiciona em cima delas. A sombra se vira e Cíntia vê sua madrasta coberta de sangue mastigando-as. Achava que zumbis nunca existiriam. Era completamente cética. Sua cabeça deu uma volta de 360º graus, agora acreditava na magia do halloween. Seus olhos percorreram as calçadas e viu terror total. A carruagem começou a andar rumo ao desconhecido. Olhou para o lado. Seu novo destino. Apenas sabia que viveriam (in)felizes para sempre. 

Fim.   

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¹pixie:. Corte de cabelo Joãozinho

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