Capítulo Único

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Algo sempre manteve a minha crença na humanidade...

E por anos, isso permitiu-me acreditar que algum dia ela mudaria de verdade, e que ela finalmente fosse aprender a respeitar e aceitar as diferenças dos outros.

Mesmo acordado eu sonhava que algum dia, nós finalmente conseguiríamos alcançar a tão esperada "paz mundial". Infelizmente, isso se mostra cada vez mais impossível.

***

Eu não tenho um nome, não pertenço à nenhuma família. Nem sequer tenho um lar ou companheiros. Não tenho absolutamente nada! Até os sonhos e esperanças que pensei carregar confidencialmente, foram roubados de mim.

Fui abandonado numa cidade que desconheço o nome, por uma mulher que preferiu enfrentar uma longa estrada para me abandonar, ao invés de superar as críticas e criar-me como sendo " o seu".

Vivo nas ruas deploráveis de um mundo ainda pior, lutando para sobreviver diante de tantas limitações que me rodeiam.

Passo todos os dias tentando encontrar alguém que me queira e que me ofereça proteção, indo de um lado a outro, me aproximando de todas as possibilidades, mas sempre sendo enxotado e maltratado, para no fim, permanecer sozinho.

Alimento de verdade também não consigo. Apenas restos que jogam ao chão para que eu cate, ou restos ainda mais indigeríveis que encontro nas lixeiras por aí.

Constantemente agridem-me e violam-me. Tratam-me como uma doença pegajosa, um monstro e uma aberração deplorável. Mas talvez, no fundo, eu realmente seja isso.

Eu acordo todos os dias, durmo, percebo o meu coração bater no meu peito frágil, sinto o sangue percorrer por dentro das minhas veias, o ar entrar e sair dos meus gastos pulmões, sinto muita fome, frio, medo, mas independente de tudo isso, não me sinto vivo!

***

Hoje, no entanto, protagonizei um cenário digno da humanidade pouco humana que me rodeia.

Acordei na madrugada fria com um choro desesperado. Levantei-me da calçada imunda da loja em que eu dormia, e fui à procura do que já imaginava ser um bebê. Tive que seguir o seu choro, pois a iluminação era precária.

E quando eu finalmente a encontrei, deparei-me com o seu pequeno corpinho sobre sacos de lixo. Ele estava nu, e completamente desprotegido. O frio e o medo eram nítidos naqueles pequenos olhos castanhos banhados de lágrimas, então, eu fui para perto da criaturinha que parecia prestes a explodir a própria garganta, e fiz tudo que me restava fazer.

Deitei-me a sua volta, impedindo que o vento soprasse sobre o seu corpo tão frágil, e pouco a pouco, fui abraçado-o. Fui esquentando o mesmo com o meu próprio calor, até que finalmente, a sua respiração se tranquilizou e o seu sono o deixou muito mais silencioso. Era adorável poder observar o rosto de um ser tão sereno e pequenino, refletindo tanta paz.

Acordei pela manhã com garrafas e pedras sendo jogadas contra o meu corpo já machucado e vulnerável. Eram pessoas terríveis e medonhas cuspindo a sua própria amargura em mim:

— Saia de perto da criança, seu animal!

— Alguém salve aquela própria vida! Ele vai passar doenças para ela!

— Com certeza roubou essa pobre criança de uma mãe descuidada!

— Matem esse monstro!

Levantei-me assustado, e vi a pequena criança ainda dormindo inocentemente.

Não consegui compreender como conseguiram julgar-me daquela forma, sendo que era só olhar e ver que ela estava bem, e que eu passara uma noite inteira no torturador relento da madrugada, para manter aquela alma viva! Mas no fim das contas, quem iria se importar com um ser como eu? Quem iria prestar atenção num animal igual a mim? Ninguém! Absolutamente ninguém!

Não saberia descrever aquele maldito sofrimento que me consumia! Era um misto de medo, ódio, rancor, tristeza, vontade de morrer, medo de morrer, solidão, melancolia, depressão, insegurança, enfim.....

Eram sentimentos ruins, sensações assombrosas, medos terríveis e desejos assustadores. Simplesmente, era um pouco de tudo do mais horrendo que existia!

Eu não queria ouvir pessoas brigando e gritando comigo pelo que quer que achassem que eu tinha feito. Não queria presenciar os mesmos xingamentos e insultos de sempre, acompanhados por aqueles mesmos olhares acusadores e cortantes.

Acompanhado das pedras que eles insistiam em jogar contra mim, fui embora. Sem rumo ou animação, nem a fé ou a esperança haviam permanecido no meu pequeno, e agora dilacerado, coração.

Dei uma última olhada à minha volta, e vi as pessoas que continuavam a encarar-me com desprezo, nojo! E faziam questão de deixar isso bem nítido nas suas palavras que mais pareciam facadas brutalmente cravadas nas minhas costas.

Isso fez-me perceber o que as pessoas realmente são, e sempre vão ser: "O defeito de fábrica do mundo".

E apesar de tudo isso, ainda há uma pequena faísca de satisfação, por ter servido como atração principal para que aquela doce criança, jamais precise passar por isso, e se tornar mais um Sobrevivente da Noite.

Sobrevivente da NoiteOnde histórias criam vida. Descubra agora