10. Um Convidado Bem Porco

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João

Assim que botei os pés no apartamento do Maurício dei de cara com a Aline e fiquei supersem-graça. Não sabia o que fazer. Não pensei que ia encontrá-lá porque  o Maurício era amigo do Renato. Alias, eu também não deveria estar ali, mas não sei como recusar um convite pra festa. Não gosto de ficar de fora.

De qualquer maneira, eu e o Renato já havíamos acertado nossas diferenças. Ou melhor, ele me procurou no dia seguinte à briga, ainda com a cara bem machucada. Pensei: “Pronto João, sua vida chegou ao fim e não teve muito sentido”, mas ele queria dizer que tudo bem, que era pra gente esquecer e entendeu que eu me metera só pra segurá-lo. Até me agradeceu.

“Não sei não, João, acho que teria arrebentado a cara daquela idiota. Transa comigo, depois fica lá, se sentindo culpada, e vem descontar em mim. Em mim, que até lhe fiz um favor. As mulheres têm uma cabeça do tamanho do caroço de azeitona. Não se deve prestar atenção a elas. O negócio é transar e pronto. É ou não é?”

Claro que sim. Não era saudável contrariar um sujeito do tamanho do Renato, ainda mais quando precisava provar que estava com razão. Deixei que bancasse o magnânimo e salvei minha pele. De qualquer forma não seria eu que iria enfiar alguma coisa na cabeça daquela anta.

Por isso nem me incomodei se o Renato apareceria do churrasco ou não. Mas não esperava a Aline. De jeito nenhum.

Ela também ficou um tempo parada, me olhando. Linda. Um dia ensolarado e quente. Vestia um shortinho estampado, bem curto, e a cada movimento mais brusco dava pra ver um pedacinho da calcinha branca. A blusa era de jeans, manga arregaçada, um nó pouco acima do umbigo e os dois primeiros botões abertos. Os cabelos soltos. Uma sandália de couro fininha.

Olhei em volta. Todos bem à vontade, de bermuda, sandália de dedo, e morri de vergonha. O idiota aqui foi todo arrumado, calça comprida e tênis.

Quis esconder minha canela horrível, inchada, com uma tremenda casca de ferida, mas ninguém sabia disso e fiz papel de mauricinho. Bom, não dava pra voltar.

— Oi, Aline.

—Oi, João. Tudo bem?

— Legal.

— Isso é cerveja?

— É. Onde eu ponho?

— Me dá que eu boto na geladeira.

Esse importante e sensual diálogo foi o único que mantive com ela durante todo o churrasco. Me sentia esquisito pra caramba. Não sei o que me deu.

Mentira. Era sempre assim. O imbecil mais desajeitado.

Pra começar, querendo ficar mais esperto, bebi uma lata de cerveja em quatro goles. Estava em jejum. Fiquei meio tonto. O Eduardo levou um pandeiro, o Felipe começou a batucar em cima da mesa, o Maurício apareceu com uma gaita e um violão e fui esquecendo de mim mesmo. E tome cerveja.

O churrasco demorou a sair. A carne ainda estava meio congelada. Aline sempre de um lado pro outro, ajudando. Eu evitava olhar muito pra ela, todo tempo tentando adivinhar por que me beijou. Mas o meu nivel de auto-estima era tao baixo que no máximo achava que ela nem se lembrava mais daquilo.

A primeira sensação de vômito veio no banheiro, fazendo xixi.

Comecei a suar frio, sentir uma marola subindo minha barriga, mas controle a coisa e saí. Isso quase foi fatal.

A segunda marola me pegou bem no meio do batuque. O edifício balançou de um lado pro outro e tentei manter a pose enquanto correio pro banheiro. Porta fechada.

Desesperado, desci pela escada em caracol que dava pro andar de baixo. Não devia ter feito isso. As voltas da escada foram fatais. Nem deu pra procurar outro banheiro. Só consegui olhar em volta. Uma sala muito grande, cheia de sofás e poltronas. No canto, um vaso de planta. Foi lá mesmo.

Mal acabei, ainda enxugando a boca com uma almofada pequena, escutei um grupo descendo a escada. Iam sacar na hora. Minha cara devia estar do avesso.

Entrei na primeira porta que vi. Não estava com sorte. Podia ter sido um outro banheiro, ou uma simples cozinha, mas era o maldito quarto dos pais do Maurício.

E a terceira marola se formou. E veio com tudo. Não deu pra segurar. Ainda tentei a janela, mas bati com a cabeça na grade. Não houve jeito. Afastei a cortina de veludo creme e vomitei atrás dela.

Espero que o Maurício nunca leia isso. Desculpa aí, cara. Foi mal.

Me ajeitei no espelho. Parecia uma vítima do Drácula. Esperei ate i sangue voltar ao meu rosto e subi novamente.

O pessoal continuava animado, a carne saindo aos poucos, um grupo sentado no chão fazia o jogo da garrafa. Alguem me chamou pra participar, mas só de olhar a garrafa rodando fiquei tonto novamente.

Aline veio me servir umas duas vezes, mas eu estava tao preocupado com meu hálito de vômito que não ousei abrir a boca.

A tarde foi caindo. Lá de cima se via uma boa parte da cidade, as montanhas ao fundo.

Me sentia frustrado pra caramba. Uma oportunidade como aquela de estar com a Aline, depois do que aconteceu, perdida. Fiquei na sacada, fingindo que via o pôr-do-sol, destacado dos outros, amaldiçoando a mim mesmo por não ser igual a eles. Porque não ia lá, como qualquer um faria, a chamava pra conversar, naquele final de tarde lindo, daí a abraçava com carinho, passava a mão em seus cabelos, beijava seu pescoço, dizia que a adorava, que queria namorar, dava um beijo em sua boca, um beijo de verdade, sentia sua língua e apertava seu corpo até a noite cair.

Mas a porcaria da noite caiu e não aconteceu nada disso. Os pais do Maurício iam voltar e fomos indo. Como na certa haveria beijinhos de despedida no rosto, tive a brilhante idéia de descer novamente, procurar o banheiro social e escovar os dentes.

Maurício, acho que usei sua escova. Valeu, cara.

E foi a coisa mais certa que fiz em toda minha vida.

No elevador estávamos eu, o Felipe, o Eduardo, a Aline e a Lídia. Já haviam apertado o térreo. Derrepente o Maurícia gritou que o Felipe tinha esquecido o pandeiro. Ele saiu pra pegar. O Eduardo ia com ele de ônibus, foi atrás. A Lídia aproveitou pra dar o ultimo beijinho no Maurício e largou a porta do elevador, justo na hora em que me ofereci pra carregar a bolsa com os cascos de refrigerante. A porta bateu e eu e a Aline começamos a descer sozinhos.

A cobertura ficava no vigésimo andar.

No décimo-sétimo nos olhávamos, completamente sem graça. Tentei sorrir um pouco, pra melhorar o clima, mas parei.

No décimo-quinto os dois, simplesmente parados, um diante do outro, sem entender nada.

No décimo-primeiro a mesma coisa.

No oitavo toquei as pontas do cabelo dela com o dedo.

No sétimo chegamos um pouco pra frente.

No quinto vi o rosto dela a um palmo do meu.

No terceiro nossas bocas se encontraram.

Chegamos ao térreo no meio de um beijo impressionante, com as lingua parecendo duas cobras presas numa caixa de aço no meio de um incêndio.

Primeira vezOnde histórias criam vida. Descubra agora