O Chão

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Kenna não entendia quem ela era, não entendia que estava amando e como estava amando.

Ela pensava e pensava enquanto balançava de um lado para o outro.

Joelhos dobrados, cabeça abaixada, murmúrios inaudíveis.

Seus olhos estavam perdidos dentro de seu corpo, ela pensava que alguém queria acabar com ela - olhou para a janela, tudo certo, a porta, trancada, o coração em chamas.

"Faz tanta diferença com quem você transa?" - sua voz ecoou em sua cabeça.

Ela sabia que era hora de ir.

15 anos, todos amargos.

As caixas em baixo da cama, faziam-na lembrar de como enquanto ela era criança, jamais teria imaginado que ser grande desse tanto trabalho.

Seus pensamentos estavam tão confusos quanto esta narrativa pobre; mas ela continuava ouvindo o "tec-tec" em sua mente.

A menina não tinha mais unhas, roera as das mãos e agora seus dedos pingavam em sangue no tapete bege. As unhas dos dedos dos pés também quase não existiam, ela as cortou tão curtas que seus nervos ardiam.

Talvez fosse um trauma, talvez ela tivesse medo de beliscões, mas não sabia.

Sua mãe havia se casado novamente, mas ela olhava para aquele  novo homem velho e só conseguia detestá-lo, pois aqueles olhos azuis enojados pareciam mesmo guardar algum segredo grotesco.

Isso gritava, era forte demais para que a menina achasse que era apenas "coisa da cabeça".

Ou talvez fosse...

Ela iria morar com seus avós por algum tempo, eles estavam idosos e já fazia meses que eles imploravam para ela passar um tempo com eles.

Eles eram boas pessoas.

O pai de Kenna havia morrido durante um assalto à banco ha mais ou menos quatro anos atrás.

Usaram o corpo dele de escudo.

A polícia sempre acredita que os assaltantes nunca vão atirar em um refém.

Quando a polícia agiu, não ouviram o aviso, mas o homem atirou na cabeça do pai de Kenna, e o pior, ela viu tudo.

As cenas jamais sairiam de sua cabeça.

Ele não era o melhor pai do mundo, mas era melhor do que não ter nenhum.

Ela às vezes vê as marcas do sangue dele pelo piso, pela calçada, nunca contou a ninguém, pois a tratariam como uma doente.

Mas é tão difícil esquecer.

Voltando ao presente...

Ela então se decidiu.

Quando a porta abriu, ela sabia que era hora de abandonar as caixas em baixo da cama, seu travesseiro gasto e todo o resto.

E aconteceu.

Kenna entrou no carro, sua mãe dirigiu por sete horas, e elas conversaram sobre coisas não muito relevantes, mas não entraram em guerra - pelo menos não dessa vez.

Quando a menina acordou, já se deparou com rostos enrugados de pele fina e branquinha.

"Como eles podem ser meus avós paternos se meu pai era tão negro? "-ela pensou.

Se olhando no espelho, viu em si os traços do pai, pele negra, cabelos crespos, nariz largo, às vezes se sentia feliz por ser assim e por se achar linda, mas tinha vezes que ela se sentia tão desvalorizada e nem sabia a razão.

Depois de sua mãe almoçar com eles e depois de uma longa despedida triste e melequenta, a mãe se foi ao longe em seu carrinho antigo verde.

Parte da alma de Kenna foi junto.
Ela estava preocupada, arfando, sofrendo, pedindo para a mãe voltar.

Mas ela não tinha mais seis anos, não funcionava mais assim, quando criança, se ela gritava, a mãe aparecia, mas depois de nove anos, tudo mudou e toda vez que ele grita, a mãe acaba se afastando.

"Eu não quero crescer". - ela admitiu em pensamento.

Olhou para seus avós e percebeu que eles já haviam sido bem mais altos.

É isso.

"Eu nasci em contagem regressiva, um dia eu serei menor do que sou agora"- outro pensamento triste.

Kenna estava tão triste que nada a confortava, nem o colo da avó, nem as piadas do avô.

Se passaram quatro dias e ela não mudou, nem melhorou.

De dia ela escutava músicas o tempo todo, ia até o galinheiro, à mangueira, ao chiqueiro, e era tudo muito entediante, parecia que só havia isso para fazer em um sítio tão grande como aquele.

Ao passar dos dias ela foi encolhendo, deixando-se cair entre os próprios dedos, de noite, ela sonhava com seu último beijo, se sentia muito culpada e voltava a chorar.

Tudo que ela queria, era se lembrar de como era se sentir viva.

Amanheceu mais cedo.

Ela pulou da cama.

Hoje será diferente.

Fez sua oração, mais uma vez mais preocupada em pedir perdão do que agradecer pelos raios de sol que entravam pela janela como um Beijo Divino.

Se vestiu, jogou o cabelo para cima, saiu sem fazer barulho e correu.

Correu até seus joelhos falharem e fazerem-na cair no chão.

Ela se levantou depois de alguns minutos que gastou em observar as formigas na grama.

Balançou a cabeça, apertou os olhos.

Sentiu.

Algo estava bem atrás dela, e ela não sabia exatamente aonde estava, mas estava longe de casa.

Seu corpo era novo, mas seu espírito era antigo, e por este motivo, às vezes ela encontrava coisas incomuns.

Ela se virou, e viu que a presença estranha e incômoda, não estava perto dela e sim há bons trinta metros.

Casas abandonadas.

Portas pequenas.

Janelas redondas.

Telhados baixos.

Cadeiras que estavam como que aguardando por alguém que sentasse nelas. Aguardando para sempre.

Ela foi andando por entre as casas.

Havia uma capela no final da rua, era pequena, estava construída pela metade, no entanto, haviam bancos lá dentro.

Eram ao todo vinte casas. E acabava aí, após as casas, só havia um rio enorme e além do rio, mais árvores e fazendas.

A atmosfera era estranha.

Ela sentiu um vento tomar posse de seu estômago, ela olhou para o céu e viu as nuvens se zangarem.

O céu se fechar.

As árvores gargalharem dela, os pássaros fugirem no céu negro e num piscar de olhos, relâmpagos, ventania, pingos grossos de chuva, e por fim, o desespero.


Ela te espera na varandaOnde histórias criam vida. Descubra agora