Julgada

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O que fazer quando todos estão contra você? Lamentar a injustiça da vida, talvez. Chorar até as lágrimas acabarem e não houver mais nenhuma para cair, por que não? Até mesmo implorar perdão incansavelmente até perder a voz e não conseguir falar.

Mas e quando nada disso consegue um resultado positivo?

Quando suas esperanças se afundam em lamentações profundas e arrependimentos dilaceram seu coração? Não há nada mais a fazer a não ser sentar em sua cela fétida e suja e esperar pelo momento que seus problemas se acabarão. Esperar por sua morte. Morte, esta, que virá por meio de um carrasco francês encomendado pelo rei a meu pedido.

Minha boca está seca e ressecada. Sinto sede. Meu cabelo castanho está desgrenhado, Lady Margarida, Arquiduquesa da Áustria, e a rainha Cláudia de Valois, ficariam horrorizadas com tamanha falta de compostura, mas não há como mantê-lo arrumado. Meu vestido, que dias atrás era a última moda na Inglaterra, já não pode ser considerado de alta costura. Suas inúmeras camadas colaram em meu corpo por causa do suor e da sujeira do calabouço desta torre imunda que meu amado marido me colocou. Não recebo visitas por ordem de meu marido, o rei Henrique VIII, meus únicos companheiros são os ratos que andam livremente pela cela e roem a palha da minha cama improvisada.

Não há como saber as horas, apenas sei que já amanheceu graças à luz que invade minha cela. Mas já não importa quantas horas já são, o importante é que hoje é o dia.
Minha sede acabará, já não sentirei-me suja e imunda nunca mais.

Os guardas já não tirarão sarro de meu destino cruel. Já não serei ofendida e agredida verbalmente por meus pecados que só a Deus cabe o poder de julgar.
Hoje eu, Ana Bolena, receberei minha salvação. Não serei inocentada porque assim os planos de Henrique não serão realizados. Não, hoje serei decapitada. Serei morta com honra, serei julgada como uma Rainha. Meus dias de sofrimento nesse calabouço infernal acabarão.

Nunca mais ouvirei o eco da voz de meu irmão durante seu julgamento. Nunca mais ouvirei minha irmã implorando pelo perdão do rei em meu nome.

Nunca mais lembrarei do choro de minha menina, minha pequena Isabel, sendo arrancada de meus braços enquanto eu era levada pelos guardas como se fosse uma criminosa, uma criminosa tão perigosa que poderia fazer mal até para minha própria filha. Minha única filha.

Me levanto do chão frio e desencosto da parede. Ouço passos fora da porta. Um barulho de cadeados sendo abertos. Um rangido de porta. Chegou o momento.

Enquanto sou arrastada pelos guardas com minhas mãos amarradas como se pudesse fazer realmente mal a oito homens robustos com aparência absurdamente medonha, minha vida passa por inteiro pelos meus olhos castanhos como se estivessem acontecendo novamente apenas que mais rápido.

Vejo minha ida para a corte de Lady Margarida, na Áustria. Meu tempo como aia da rainha Cláudia de Valois. Meu retorno para trabalhar como aia da rainha Catarina Aragão, a primeira e, pelos olhos de Deus, a única esposa de Henrique VIII. Sinto as dores de meus filhos natimortos. Choro o nascimento de minha filha.

Relembro toda minha vida. Pelo caminho inteiro até minha liberdade lembro cada erro que cometi, cada tristeza que senti, cada pecado que pagarei depois desta manhã.

E minhas lembranças guiam-me durante esta caminhada. E são elas que me dão forças.

— Vamos, ainda falta muito, meretriz. — Um dos guardas aperta meu braço esquerdo e me guia por outro caminho. Não o que daria para o cadafalso da torre verde, onde eu estava sendo presa até agora. Guia-me pelo caminho oposto, ao norte. Para a torre branca.

Não serei morta como todos, pelo que parece. Não sei se devo considerar uma honra ou uma ofensa não morrer no mesmo lugar que meu irmão e mais quatro homens morreram injustamente. O fato de não ser levada ao local que é realizado as execuções não é um bom motivo para renovar minhas esperanças. Sei que hoje será minha execução. Sei que não há mais motivos para arrependimentos. Mas não quero partir sendo julgada por crimes que não cometi. Pagarei, sim, por erros passados e não pelo que me julgaram culpada.

Pagarei por ser a esposa desprezada do rei. Assim como foi Catarina Aragão e assim como será a atual amante de meu marido, Jane Seymour.

Mas antes que meu tempo nessa vida acabe e a hora de meu julgamento se inicie, deixe que lhe conte o motivo de minha condenação.

A Esposa Desprezada Onde histórias criam vida. Descubra agora