Prólogo

787 58 65
                                    

Desde que nasci, este era o primeiro ano em que a Esfera onde eu vivia seria a anfitriã do Festival Anual da Primavera e eu, assim como todas as crianças do local, não conseguia conter minha excitação. Meus pais trabalhavam noite e dia enfeitando as ruas de pedra próximas de casa com balões e fitas coloridas, para que nossos convidados se sentissem bem acolhidos em nossa singela recepção.

O ano era 2004 e eu já tinha completado cinco anos. Gostava da sensação de lembrar que frequentaria um festival com essa idade — as crianças menores de oito anos não eram permitidas a não ser que o evento fosse realizado em sua própria Esfera —, então todos os dias eu agradecia por ter sido tão afortunada. Eu sentia, dentro do meu pequeno coração, que esse seria um ano de muitas primeiras vezes: foi o ano em que comi chiclete pela primeira vez, também foi o ano em que o chiclete foi parar no meio do meu longo cabelo loiro, que por fim adquiriu um novo corte ao estilo dos meninos da minha sala de aula. Meus pais disseram que eu seria uma princesa diferente, afinal de contas era raro encontrar uma de cabelo curto, então passei a gostar do meu novo visual, mesmo que o senhor da mercearia teimasse em me chamar de "moleque Conne" — esse era o meu sobrenome e, aparentemente, meu novo apelido.

No dia do festival, meus pais me acordaram e também a minha irmã mais velha, Annora, assim que os primeiros raios de sol entraram pela janela de vidro do quarto que compartilhávamos. Diferente dos outros dias, eu saltei da cama com os olhos já bem abertos e me vesti tão rapidamente que até assustei meus pais.

Nós tínhamos duas fadas ajudantes em casa, Yellow e Red. Era comum que todas as famílias tivessem algum ser mitológico de companhia, então eram elas que nos ajudavam com os afazeres domésticos, além de serem habilidosas em corte e costura. As duas eram tão pequenas que não mediam mais do que vinte centímetros e sempre voavam de um lado para o outro com muita disposição. Hoje, no entanto, eu estava tão animada que me movia mais rápido do que elas e era a primeira na porta, esperando para partirmos.

A Esfera estava tão cheia de pessoas diferentes que eu mal conseguia acompanhar tanto movimento. Meu pai tinha me colocado sentada em seus ombros e segurava minhas mãos enquanto se movia pelas estreitas ruas abarrotadas. Eu sabia que havia uma mistura das mais diversas pessoas, mas todos pareciam normais aos meus olhos. A Esfera da Tristeza estava lá, a do Medo, do Afeto e da Raiva também. Eu esperava ver coisas que nunca tinha visto antes, mas tudo o que meu pai me apontava era uma senhora abraçando diversos desconhecidos na calçada.

— Olhe como aquela senhora é afetuosa, Lotus — meu pai disse enquanto eu acompanhava seu olhar. — Está distribuindo abraços aos pedestres. Sabe de onde ela veio?

— Da Esfera do Afeto — respondi com um sorriso, embora não fosse uma pergunta difícil.

Meu pai celebrou minha esperteza, bobo como muitos pais, e então me levou até o centro do local onde havia um grupo tocando diversas músicas em um palco. Eles eram da nossa Esfera e cantavam melodias alegres e animadas, enquanto metade da plateia dançava e a outra metade apenas assistia. Meu pai se distraiu tanto com a música que eu já estava pegando no sono quando vi um coelho marrom cruzando pelo canto da calçada. Como imaginava, pedi para descer de seus ombros e ele nem mesmo reparou quando saí de seu lado e corri atrás do animal que tinha desaparecido de minhas vistas.

Onde ele estaria?

Foi então que vi um garoto sentado no chão, suas pernas estavam abertas e havia algo de errado com seu rosto. Em frente a ele, o coelho marrom o encarava com suas duas orelhas em pé. Aproximei-me passo a passo para não fazer barulho, tinha medo de assustar tanto o animal quanto o garoto, que não parecia bem. Agachei-me próxima aos dois e perguntei, enquanto o analisava:

— O que há de errado?

O garoto me encarou, suas bochechas eram redondas e coradas e estavam molhadas. Ele me olhava como se não entendesse a minha pergunta.

— Ele está chorando.

Assustei-me com a voz súbita que surgiu ao meu lado e caí sentada para trás, sentindo o coração acelerar. Havia um garoto agachado junto a mim e eu nem mesmo o tinha visto se aproximar. Seus olhos e cabelo eram tão escuros quanto a noite e sua pele tinha um tom pálido e acinzentado, diferente da minha, que era bronzeada do sol. Meus pais sempre me faziam tomar uma certa quantidade de sol para que ficasse saudável, mas parecia que aquele menino jamais tinha visto a luz do dia — embora estivesse parado ao meu lado no meio do dia. Quem ele era e por que era tão diferente? Embora parecêssemos ter a mesma idade, seu olhar não tinha vida e sua voz soava como a de alguém sábio.

— Nunca viu alguém chorar? — ele perguntou e sua voz gélida me fez tremer.

Balancei a cabeça negativamente e me virei para o outro garoto, que limpava suas bochechas molhadas. Então era isso que acontecia quando você chorava? Meus pais haviam me contado que saía algo chamado lágrima de seus olhos, mas eu não imaginava que pudesse ser dessa forma.

— Por que está chorando? — questionei o garoto de bochechas fofinhas.

— Eu estou com medo. — Ele apontou para o coelho que ainda estava entre nós.

Dei um sorriso e me aproximei do animal, que me deixou pegá-lo no colo sem maior cerimônia. Acariciei seu pelo devagar enquanto os dois garotos me observavam.

— Não precisa se assustar, ele é um animal indefeso. — Encorajei-o a levar sua mão até o pelo dele. — Ele gosta de ser acariciado dessa forma.

Enquanto ele tentava vencer seu medo e se convencia de que eu estava falando a verdade, o menino dos olhos negros ainda nos observava e seu semblante estava mais sério do que deveria.

— Isso não é ruim — o bochechudo disse, abrindo um sorriso. — O pelo dele é macio.

— Ele é muito adorável — respondi enquanto o coelho deitava confortavelmente em meu colo — De qual Esfera você é?

Ele me explicou que vinha da Esfera do Medo e que, por causa disso, se assustava facilmente com qualquer coisa. Logo percebi que ele era alguém com muitas emoções, pois suas lágrimas nem tinham secado por completo e ele já sorria para mim mostrando todos os dentes.

— E você? — perguntei, me virando para encarar o outro garoto, mas me deparei com seu espaço vazio.

Olhei para os lados à procura dele e o vi caminhando distante, voltando para o meio da multidão. Enquanto se afastava vestido em roupas escuras, perguntei-me se algum dia o veria novamente.



A Esfera Comum (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora