O trote rápido marcava o ritmo nas pedras e os ecos morriam secos naquela noite abafada. Ainda com todo o calor, a crina curta do cavalo se eriçava, como se dele fosse a fuga e o medo, e o tempo calado era perturbado apenas por aquela corrida solitária.
Um lençol de pó se assentava preguiçosamente sobre o leito da estrada a medida que os cascos entravam mais e mais naquela noite. A chuva prometida dos últimos dias não havia caído e o ar se demorava e parecia cortar ao ser puxado para dentro. A aridez era incomum naquele mês de outubro.
Num dia qualquer, além das incontáveis pedras de infinitos tons ladrilhando as estradas, poderiam ser vistos Guadirobas retorcidas que espreguiçariam do mato espesso, e ali e aqui minúsculas Lantaninhas coloridas e bate-caixas salpicadas, protegidas pelos espinhos caprichosos dos Gunduzeiros. A estação das águas viria para levar o pó e trazer consigo o barro, os rios iriam encher até algumas portas e as casas teriam a atenção das cabeças-de-quilha e escorpiões.
Mas apesar de rica, a vida era oculta e silenciosa do lado de fora das poucas porteiras da região e naquela noite de estiagem, a falta de luz tingia a vegetação seca de cores mortas, ao passo que o vento parado se saturava de marcha e poeira.
Os cascos seguiam deslizando nas arestas soltas da estrada de cascalho enquanto as tiras de couro, que apertavam a cabeça angulosa do animal, eram puxadas pelo cavaleiro, exigindo do velho cavalo de carga toda a energia que ainda poderia ter. As veias saltadas do pescoço do condutor pulsavam de medo e excitação e a noite seguia entrecortada pelos açoites das rédeas e os urros de pressa.
Atrás e ao longe uma silhueta vermelha assaltava o horizonte. O fogo subia pequeno, mas pequena também era a fazenda àquela distância. Uma Aureola de fumaça viva coroava a construção e as chamas, ainda que de longe,pareciam crepitar nos ouvidos do cavaleiro.
As duas figuras que se assomavam ao cavalo seguiam rápido pela paisagem noturna.O firmamento piscava tímido, seus vaga-lumes de gás e luz, presos na teia noturna do céu, se mostravam pouco incomodados com aquela presença furtiva.
O homem bufava. Seus punhos se fechavam nas rédeas e comprimiam os dedos nodosos, já pálidos pela força que faziam. A respiração seguia difícil pela boca seca e pelos solavancos na sela, os pés descalços ameaçavam escapar dos estribos e as pedaleiras, já muito gastas, lhe mordiam as solas acostumadas a terem a grossa botina por proteção. A barriga exposta do cavalo lhe imprimia uma textura estranha nos tornozelos e os calcanhares sentiam a cada chute a falta das esporas.
A mulher nada dizia. Os olhos fixados nas costas do cavaleiro eram tão mudos quanto ela e pareciam divisar algo que não estava ali. Sua única expressão era a força com que envolvia num abraço o condutor e lhe estreitava as costelas, unindos os dois na mesma pressa, balançando num uníssono duro e desajeitado na sela.
O homem havia perdido seu chapéu para a estrada e da cabeça descoberta desciam várias linhas de suor. Suas mãos e seus olhos manobravam em conjunto para evitar qualquer buraco no caminho e a sua atenção naquele instante estava em qualquer lugar a sua frente, alheio ao que deixava atrás de si. Naquela rota escura o mundo parecia se repetir num relógio quebrado e compassado apenas pelos toques dos cascos no chão de pedra, sem ponteiros que marcassem a passagem do tempo.
Era impossível dizer em qual hora estavam, mas à ele importava somente a distância. E quando da fazenda parecia estar um pouco mais seguro, seus sentidos lentamente sobrevieram, e ainda difusos, o cavaleiro teve conta de si e do abraço sufocante.
O movimento de protesto na tentativa de se soltar foi ignorado ao que o cavaleiro acresceu de uma cotovelada.
O golpe trouxe de volta a mulher do seu transe, os braços imediatamente afrouxaram e penderam ao lado do seu corpo. Atônita, como empurrada para fora de um sonho, ela sentiu os olhos perdidos se encherem de lágrimas, mas conteve o choro, no medo de se seguirem mais castigos.
Seu rosto e cabelos estavam embotados de poeira, as poucas lágrimas já secavam e deixavam um desenho sujo que descia até o queixo afilado e, ainda presa no turbilhão de acontecimentos que se embaraçavam até aquele momento, ela não deixou de se sentir triste por estar tão feia.
Suas mãos tatearam o caminho de volta às costas do cavaleiro, desta vez com a suavidade com que dividiam a cama e com a qual ele estava acostumado.
O ar entre os dois estava pesado de calor e suor, e o cheiro acre do couro, do cavalo, do cavaleiro e seu próprio cheiro, queimavam eu seu nariz.Sentiu a boca um gosto amargo, como de algo solto dentro de si, que agitado pelo movimento dos dois queria sair. Seu corpo doía por conta da posição forçada, ao que seus músculos suplicavam para ver o que deixavam para trás,onde talvez ainda existisse a fazenda.
Uma segunda onda de tristeza percorreu seus membros doloridos, desta vez em função da falta de certezas que a estrada de pedras soltas teimava em não trazer. A sua vida de escrava de fazenda era a única coisa que conhecia e que havia sido ensinada a acreditar.
De onde estava a rotina parecia já fazer falta, e o que vivia ali era um produto de um sonho estranho de outra pessoa, como se tudo o que se passava naquelas horas fosse uma conversa que tivera, um causo contado e ouvido sem muito interesse, às margens do rio onde lavava as roupas da casa grande.
Mais uma vez se deixou perder nas costas do homem à sua frente, sua mente cada vez mais rarefeita e longe, enquanto ela e o cavaleiro eram lentamente dissolvidos em noite e poeira.
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