Capítulo 1

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"Travel light" - Pedro sorriu.

Ao sair do Brasil, há quinze anos atrás, havia levado apenas algumas malas, poucas fotos e duas irmãs. A bagagem de roupas leves feita para o clima tropical foi motivo de piada, logo no primeiro inverno em Lisboa. As irmãs nunca lhe foram muito úteis também. As fotos pareciam ser de outras pessoas, e daquelas coisas que foram com ele eram as únicas que voltavam, mas eram ainda assim vagamente familiares.

O aeroporto internacional do Galeão estava agitado. Carregadores, britadeiras, placas de compensado, e por fim, os passageiros, disputavam a circulação do lugar. Era difícil acreditar que, por trás de toda aquela confusão, aviões subiam e aterrissavam seguindo normas e tratados, ignorando a reforma dos pavilhões que se seguia.

Depois de todos esses anos fora do país, aquilo não era uma cerimônia de boas vindas. Logo no saguão de desembarque, o termômetro marcava 37 graus e na pista de decolagem as linhas de tráfego dançavam com o calor do asfalto. O zumbido constante das máquinas, furando e quebrando, falavam em conspiração entre si e pareciam mais atentar para a queda do aeroporto do que construir um.

Pelos corredores e andares, alguns dos viajantes que passavam se entreolhavam atônitos e por vezes se sorriam sem graça, muitos tinham nas mãos a vã esperança que os cartões de embarque os levassem aos terminais. De onde estava sentado Pedro podia ver um grupo de crianças que brincava e no meio de toda aquela bagunça, parecia ser o único movimento organizado. Elas davam entre si os braços e zigue zagueavam pelos bancos cinzas dos guichês. Um pai lia um jornal, de quando em quando ensaiando um protesto, que não viria até ter acabado o caderno de esportes.

Uma fina camada de poeira registrava os passos das pessoas no chão de cimento e Pedro teve conta de que ela também se amontoava sob seus pés. Com os pés, pouco a pouco, ia fabricando pequenos montes que tingiam a lateral do tênis claro de um vermelho tijolo. O corpo arqueado sobre si na poltrona, os braços com as mãos cruzadas, como em oração, criavam uma moldura por onde via o piso e a sua criação. Os cotovelos apoiados nos joelhos imprimiam uma dormência nas pernas, mas estava entretido e entediado demais para mudar de posição.

O aeroporto estava cheio. O Rio de Janeiro naquela época do ano era um viveiro de gente do mundo inteiro. Nas praias as pessoas disputariam os melhores lugares para as fotos e os batedores de carteira disputariam essas pessoas. Os turistas se vestiriam como turistas e os cariocas, como de costume, não teriam tanto interesse em se vestir. Quinze anos fora e aquele aeroporto condensava nos minutos de espera, pelas suas poucas mudas de roupa, mais vida que a sua estadia na Europa.

A voz que veio do alto falante informava a todos de mais um atraso nos voos. Num português agudo e devagar, a mulher que pedia desculpas em nome da companhia aérea, lembrou a Pedro que ele deveria ligar e falar com sua família, avisá-los, como haviam combinado, assim que ele chegasse. O pedido feito na voz da irmã mais nova veio de uma maneira estranha ao telefone na última conversa que tiveram, quando estava em Portugal, mas ele iria cumpri-lo.

Quarenta minutos depois da sua chegada a única mala que trouxera emergiu da esteira, bem logo ao final do aviso nas caixas de som indiscretas, empoleiradas no alto do saguão, como se o pedido de desculpas pelos atrasos, no tom de deboche, fosse a palavra mágica para conseguir a sua bagagem de volta.

O termômetro piscou em neon e era pouco mais de onze da manhã. 36 graus. O seu relógio de pulso marcava às horas do outro lado do Atlântico. A operação de mudança dos ponteiros foi rápida e o visor digital brilhava em sincronia com o horário local. Ele, o dono do relógio, ainda precisaria de alguns dias mal dormidos até que o seu ciclo se encaixasse no do Novo Mundo.

O peso da mala de volta ao corpo lhe dava uma confortável sensação de segurança. Os últimos dois meses haviam sido uma despedida lenta da sua vida na rua dos Cruzeiros, um lugar barato e o que seu salário de dentista permitia pagar. A vizinhança era quieta, os feriados eram mudos e o ar era frio todos os dias do ano. As paredes das construções do início do século tinham um tom apergaminhado, como se cada uma fosse página na história dos quarteirões do seu antigo subúrbio. A rua de pedra assentada pela passagem dos casais, nas indas e vindas pela Travessa do Pardal, ia lentamente se exprimindo para caber os carros que dormiam nas calçadas. Às dezenas, janelas quadradas miravam as pessoas se cumprimentarem corteses, onde os assuntos se repetiriam. A rotina era um bem comum e os moradores da Freguesia da Ajuda eram zelosos dela. Os homens, até alguns mais novos, usavam chapéus, os sapatos lustrosos e os olhares baixos. As mulheres eram recatadas demais, o que lhe fazia lembrar de Laura.

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⏰ Última atualização: Nov 08, 2016 ⏰

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