Consequências

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2016 

Enquanto tento manter a calma e parar de tremer, todos os quatro anos surgem como uma entrega surpresa deixada na porta de casa.

Não era a primeira vez que essa ideia maluca surgia na minha mente: várias vezes pensei no quanto poderia causar a maior revolução na minha família apenas agindo como eu mesma, de uma forma pouco convencional. Faltava muito pouco, e só por um simples segundo quis desistir; felizmente o medo foi embora tão rápido quanto chegou.

Talvez no fundo, bem lá no fundo, todos eles já esperassem tal idiotice de minha parte. "Ana, enfim, criou asas e nos deixou! " -essa, com certeza, seria a frase de efeito de papai e dou risada só de imaginar a cara de espanto de mamãe ao ler a carta de despedida - ; espero que um dia ela me perdoe, afinal de contas, ela nunca esperou muito de mim.

Tudo, de certo modo, foi consequência da partida de Jaime: se ele não tivesse deixado Fortaleza tão de repente, levando não um, mas dois pedaços de mim, eu não estaria nessa, penso, pois muito provavelmente eu ainda estaria na faculdade, fazendo um curso que nem ao menos gosto. Minha falta de autenticidade a cada dia me fadigava, e só vivia pelo simples ato de viver.

Até que certo dia, estava passeando pela orla da praia, um dos poucos momentos em que me dei ao luxo de sair, passei bem em frente ao antigo prédio onde ele morava; fitei-o por uns minutos: até quando eu faria isso e depois seguiria o mesmo percurso por repetidas vezes? Não sabia ao certo, mas fui para casa com uma sensação estranha, algo que nunca tinha sentido. Ao chegar, fui recebida mais uma vez pelas perguntas cansativas de minha mãe:

- Por que você se atrasou tanto pro almoço? Você está fazendo algo que não sabemos?

Ana, não me ignore, estou falando com você!

Era demais para mim; estava há vinte e um anos vivendo uma vida monótona, tentando agradar pais que nunca ficavam satisfeitos. Não poderia reclamar da vida, já que tinha tudo, filha única, família estável e bem-sucedida, mas, claro, aos olhos dos outros, pois só eu sabia o que eles me obrigavam a passar. Jaime aparecera quando mais precisei de alguém, era o único que sabia do motivo de meu sofrimento e fazia-me conseguir enxergar uma vida além da que eu vivia. Precisava partir para me encontrar.

E, enfim, eu fui em busca de um grande talvez como diria François Rabelais. Minha ideia inicial seria procurar Jaime, mas, pelo que conheço dele, nem deve estar em sua antiga cidade, talvez tenha se mudado para Londres - era isso que ele tinha em mente pelo menos - e prefiro continuar acreditando nisso. Ele dizia que manteria contato, que nunca iria me esquecer e pior ainda : que voltaria para me buscar; tínhamos feito algo tão importante juntos, eu iria de um jeito ou de outro para sua cidade natal. Pois precisava saber o que poderia ter acontecido. Por que ele não cumpriu com o que disse?

Não sei se um dia irei descobrir, mas preciso tentar; quando o assunto é Jaime o melhor a se fazer é ir atrás, mesmo que para isso tenha de viajar vários quilômetros.

Penso nisso tudo enquanto viajo literalmente sem rumo. Não sei onde estou; duas horas atrás estava no interior de Minas - aqui, é tudo tão infinitamente lindo com montanhas enfeitadas com suas flores de diversas cores que quero parar e ficar observando - acho que ainda devo estar em Minas, pois a paisagem pouco mudou.

Depois de mais uma hora, estaciono o carro num bar, pergunto onde estou e o atendente diz ser Uberlândia; meu coração acelera - finalmente cheguei, penso. Agora posso dizer para mim mesma que Jaime não está e depois poderei continuar minha viagem com esse peso de longos quatro anos enfim jogado fora.

Passo pelo centro da cidade, pergunto a um vendedor ambulante onde fica o endereço em que tanto quero chegar; ele me indica e agradeço já correndo de volta para o carro. Sigo o trajeto mal podendo me conter, avisto a rua e entro devagar, saboreando esse momento tão importante para mim.

Paro o carro, desço, caminho até a frente da casa com o coração cheio de esperança. De repente, a porta abre com tudo: uma menina linda corre e para assim que me vê; não deixo de notar, ela se parece tanto com ele, mas tanto, que chega a doer, mesmo os olhos, ligeiramente puxados, são idênticos. Ela sorri para mim, eu retribuo o sorriso e ficamos nós duas nos olhando, com a sensação de anos haverem passado, até que uma senhora surge de dentro da casa, encara-me e espero ela reconhecer-me, o que não demora muito. Joana arregala os olhos e começa a chorar, sendo assim corro para abraçá-la e choro junto, abraçando-a com toda força; instantes depois a menina puxa minha saia e obrigo-me a soltar de Joana para encarar aquela que foi a minha maior realização, Clarice.

Ela pergunta quem eu sou e porque estou fazendo sua vovó chorar; não me contenho e dou uma gargalhada em meio às lágrimas. Joana me encara e fico incomodada com seu olhar de tristeza. Agacho e fico do tamanho de Clarice. Quero tanto abraçá-la, mas me contenho, porque ela poderia se assustar, então digo que sua avó está apenas feliz de me reencontrar.

Suas lágrimas são de felicidade e não de tristeza; ela apenas me fita e sai correndo em direção ao balanço rosa em frente a uma das janelas. Joana observa a cena e me convida a sentar no banco da sacada da casa, concordo e assim fizemos.

Fico olhando para Clarice com tanta atenção que por um breve momento quase me esqueci da presença de Joana ao meu lado; viro, encaro a mãe de Jaime e vejo que ela quase não mudou seu cabelo curto cor de mel -ela se parece muito com ele não é? - , disse Joana.

Concordo com a cabeça.

- Não imaginava que um dia você apareceria. Jaime queria esperar você ficar mais velha, ele...

Clarice chega correndo e pergunta mais uma vez quem eu sou; fico sem fala e é Joana quem diz:

- Ela é uma amiga do seu pai, meu anjo, queria te conhecer, por isso veio nos visitar.

Clarice vira e pergunta meu nome.

- Me chamo Ana, seu pai não está em casa? - digo.

Ela fica quieta e olha para sua avó, esperando, pelo que vejo, uma resposta.

- Ana, ele... - Joana chora.

Fico paralisada. Clarice me encara e repentinamente solta:

- Vovó, papai não vivia chamando por uma Ana enquanto dormia?

- Joana, o que está acontecendo? – digo, ficando nervosa.

- Aconteceu há seis meses. Jaime foi te buscar, Ana; queria te fazer uma surpresa, mas, um pouco antes dele chegar em Fortaleza, ele... - Joana para.

Não quero ouvir o final, pois imagino o que aconteceu.

Clarice me encara de novo, porém, dessa vez, com os olhinhos brilhantes e tristes. Num instante, estou abraçando- a e a única coisa que sinto é amor; amor por essa linda menina que nem sabe que sou sua mãe; essa menina que perdeu o pai e nunca pôde ter uma mãe presente nesses quatro anos. Seguro as lágrimas e penso no quanto queria voltar no tempo e nunca tê-la deixado. Ter impedido Jaime de ir embora mesmo que muito provavelmente ele fosse do mesmo jeito, eu não poderia ficar com eles.

Meu coração dói ao lembrar Jaime chorando enquanto eu saía do seu apartamento deixando ele e Clarice sozinhos. Tínhamos tantos planos, mas tanta coisa nos impedia de ficarmos juntos. Ele era minha única paz no caos que vivia e nunca mais iríamos nos ver, nunca mais. E essa certeza é tão injusta que solto nossa filha e saio correndo em direção ao carro.

Com os olhos embaçados, seguro o volante com força e vejo Joana segurando Clarice no colo pelo retrovisor. O olhar da mãe de Jaime diz tudo que seu filho não foi capaz de me dizer. 

Quando você partiu Onde histórias criam vida. Descubra agora