Cramunhão, ou quase isso

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Depois de tantos anos atendendo os mais inusitados pacientes em seu consultório, era estranho para Dr. Facundo ficar nervoso com uma consulta novamente. Faltavam cinco minutos para as seis da tarde quando dona Eunice bateu na porta para avisar que o paciente já havia chagado.

- Pode manda-lo entrar, Nice. – Disse lhe tentando esconder o nervosismo com um sorrisinho torto.

Assim que ele entrou o doutor ficou surpreso, faltavam os chifres, a pele vermelha, os pés de cabra, o tridente e até mesmo a arrogância. Na verdade, poderia jurar que aquele senhor de cabelos louros e olhos verdes era a pessoa mais simpática que já havia conhecido.

Olhou a ficha novamente para ver se havia errado o paciente, mas não havia nada que indicasse tal confusão.

- Parece surpreso, doutor. – Disse o senhor – A maioria das pessoas fica, algumas até se desapontam.

- Você sabe, você é um pouco famoso, ouve-se muito sobre você. – Dr. Facundo não conseguia definir se estava aliviado ou preocupado, mas decidiu prosseguir com normalidade, ou o mais próximo disso que a situação permitia. - Como devo chama-lo?

- Pode me chamar pelo meu nome de batismo, Lucifer.

- Ok, Sr. Lucifer, como você está sentindo-se?

- Bom, para falar a verdade um pouco nervoso, é a primeira vez que procuro esse tipo de serviço.

- Houve algo em especial que te fez tomar essa decisão? De procurar ajuda?

- Acho que é um amontoado de coisas que vem se acumulando a milênios, sabe? Mas aconteceu uma situação que me fez pensar "chega disso, preciso conversar com alguém".

- Pode descrever essa situação?

- As pessoas criaram uma mania feia de colocar a culpa de tudo em mim, principalmente os crentes. Isso já me enche o saco faz muito tempo, mas na semana passada foi demais...

Lucifer começou a chorar copiosamente. Mesmo hesitante, Dr. Facundo alcançou-lhe uma caixa de lenços.

- Está tudo bem, leve o tempo que precisar.

Depois de se recuperar, prosseguiu:

- Eu estava assistindo um culto em uma igreja aqui da cidade, quando uma senhorinha pediu para contar um testemunho... Ela disse que o "diabo" está atentando contra a vida dela, que quase não tinha conseguido ir no culto porque olhou na gaveta e todas as calcinhas haviam sumido!

- Deixa eu ver se entendi, ela te acusou de roubar as calcinhas dela?

- Sim, veja bem com o tipo de gente que eu tenho que lidar, e o pior não é isso, a frase seguinte foi "mas o Diabo não pode me parar irmãos, eu vim sem calcinha mesmo, aleluia!", ai eu chorei, relaxada...

- Entendo, qual foi seu sentimento nesse momento?

- O sentimento foi de cansaço, isso não é de hoje, a culpa é sempre minha, gente, eu não sou onipresente, esse é Deus, eu não sou responsável por tudo que acontece no mundo, eu sou só um anjo que fez merda.

- Cansaço, ok, algo mais?

- Sim, acho que estou passando por uma crise de identidade. – Disse Lucifer. – Passei tanto tempo ouvindo o que as pessoas inventam sobre mim que já não sei direito quem eu sou. Cada um me descreve de um jeito, ou me dá um nome diferente. Diabo, Capeta, Coisa ruim, Cramunhão, Pai da mentira. Preciso me descobrir, doutor, saber quem eu sou.

- Todos temos essa necessidade. Se me permite perguntar, como é seu relacionamento com seu pai?

Lucifer ergueu as sobrancelhas, surpreso com a pergunta.

- Bem, você sabe, ele me expulsou de casa, desde então nos falamos pouco.

- Você se sente rejeitado por Ele?

- Sim...

- Isso explica muita coisa, inclusive seu sentimento de rejeição por parte da humanidade. Você devia conversar com seu Pai sobre isso, a influência dos nossos pais pode ecoar por muito tempo e até mesmo afetar nossa vida e decisões.

- Vou ver o que posso fazer, mas não prometo nada.

- Tudo bem, ao seu tempo.

- Obrigado pela ajuda, Doutor, nos vemos semana que vem. Preciso ir, tenho culto as 19:00 no centro, e o trânsito a essa hora está um verdadeiro inferno.

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Dr. Facundo e os estranhos ocupantes do seu divãOnde histórias criam vida. Descubra agora