ACORDEI MAIS UMA VEZ deitado numa mesa de hospital. O corpo congelava sobre a superfície de metal.
Antes que pudesse me curvar na tentativa de localizar minhas vísceras, pulei da mesa em busca de um jaleco. Estava nu e com o corpo todo depilado! Abri a porta. Senti o ar puro de outrora novamente, enquanto enchia mais uma vez meus pulmões. E, claro, o inveterado cheiro de álcool, lixo hospitalar e morfina o motivo das cócegas em minhas narinas.
O Covas estava logo à frente, conversando com um enfermeiro, que tentava através de gestos afoitos afastá-lo dali.
Foi então que ouvi minha própria voz (mais uma vez) despertar ecos pelo corredor:
– Estou bem! estou bem! Não morri! – (dizer aquilo era como declamar um poema de Lord Byron), – Sou cataléptico! Não viram? Está tatuado na nuca! CA-TA-LÉP-TI-CO – Diante do silêncio que se instaurou no recinto, murmurei: – Aquele pobre diabo que morre e não morre, vocês deviam saber... – (O silêncio perdurou). – Bem, acho que não saibam. Alguém pode me devolver os documentos?
Ao me ver, o enfermeiro ficou lívido como papel e saiu correndo.
Covas suspirou.
– Cá estamos de novo, Toti – murmurou ele. – Talvez não tão para cá, é claro, mas a salvo!
Dei de ombros (feliz desta vez por ter ombros mais uma vez).
Sabia que ia acontecer de novo.
Era assim todas as vezes. E tinha de me resignar.
Quer dizer, não tinha tempo para pensar neste infortúnio. Precisava ter certeza se havia morrido sem minha carteira e documentos depois de ter saído de casa.
Covas, agora livre do enfermeiro, apertou o passo em minha direção.
– Quantas vezes vou pedir para não esquecer a carteira – disse enfim. O rosto quadrado de meu amigo e os vincos na testa o faziam parecer um buldogue, – a polícia logo estará aqui (de novo)!
Avaliei minhas pernas lisas e torci o nariz. Covas prosseguiu, exasperado:
– Acha mesmo que estarei por perto sempre que isto acontecer?
Branquelo daquele jeito, e tão familiar aos meus olhos, Covas confundia-se com a alvura de um cenário que já não me era uma novidade, embora, soubesse, estivesse acostumado a acordar em praças públicas, banheiros e cemitérios.
Tudo bem. Confesso que daquela vez havia demorado o suficiente para acordar, mas antes ali, pensei, que dentro de uma câmara refrigerada.
Tossi, tentando expelir algo que devia estar preso na garganta há dias.
– É para isso que te pago, Covas, – disse-lhe, – mas sei que está aqui porque se importa comigo, ahn? Dom Quixote e Sancho Pança?
O jovem coveiro bufou. As tatuagens que cobriam ambos os braços, com suas carrancas japonesas extremamente coloridas, pareciam me observar com desaprovação.
Saímos pela portaria do hospital Santa Florence, enquanto seguranças corriam em nosso encalço até a portaria.
Um carro de aplicativo nos aguardava, enquanto apressadamente descíamos a escadaria de pedra e relanceávamos nossos olhos por todos os lados. Não era tão ruim fugir como se fôssemos foras-da-lei. Mas essa correria toda me fez soltar um profundo e desolado suspiro afetado.
Os prédios em art decó, acinzentados e emblocados como lego, corriam a perder de vista, e a rua com seus transeuntes afoitos, estava apinhada de criaturas translúcidas serpenteando entre eles.
Os fantasmas do meu despertar.
Isso acontecia toda as vezes em que morria. Eram os tais reflexos da dimensão dos mortos.
Ah, agora que estou vivo de novo, devo esclarecer alguns pormenores. Este fenômeno acontece sempre com quem volta da morte.
Sim. Morrer possui suas artimanhas.
Mas confesso (a contragosto) que é mesmo impressionante engolir a existência de um mundo invisível. Ainda mais diante de meu nariz.
Desde os anos 80 era assim. Meus pais me levavam para o zoológico e lá via girafas sem pescoço, elefantes brilhantes, e macacos que atravessavam a água borrifada dos umidificadores sem se molhar. Sentia como estar numa sala de cinema a céu aberto com um projetor lançando imagens sombrias sobre telas de vidro esparramadas por todos os lados.
Meu pai berrava:
– Toti, oh, Toti! Olha para onde anda, moleque burro.
Meu pai, a propósito, foi o respeitado juiz Geboreno. Um sujeito de pouco afeto, daqueles que mal compreendiam o quão desastroso era para um ser humano (como fui) enxergar fantasmas vagando como vespas.
Também não tive escolha. Era o preço de morrer todos os dias. E voltar de lá...todos os dias, também...
Entramos no carro, eu e Covas, e afundei no banco de trás enquanto meu companheiro ditava as coordenadas de nosso destino ao motorista. Não tive como não perceber que o homem ao volante vinha acompanhado de uma criatura fantasmagórica e disforme do tamanho de um gorila no banco do passageiro.
Já começava a me resignar de ver aquilo, quando ouvi Covas dizer naquela voz calma e disciplinada:
– Rua do Padeiro, 325, por favor.
O hospital, a rua, e todos os transeuntes se transformaram subitamente em um borrão colorido diante de mim. Por que raios tinha de ser assim? Pagaria o desconforto de descobrir que os fantasmas coloridos nos observam até no banheiro, causando situações constrangedoras?
Está certo. Ver espectros tinha lá uma mixa vantagem. Dependendo da luz que emanavam, era possível perceber o mal e nos manter longe de malfeitores, assassinos e trambiqueiros.
Sei disso porque, além destas criaturas que vagam aleatoriamente pelo espaço-tempo, há também aqueles que são os nossos reflexos. Talvez a nossa existência duplicada do lado de lá. Andam acorrentados ao nosso corpo físico e mostram um pouco do que você é de verdade. Por exemplo, nesse momento, além de outros acompanhantes espirituais, você tem outro de você, bem do jeitinho que você é, sem frescuras ou medos. Se estiver gordo, provavelmente seu fantasma será magro (do jeito que você ainda se sente de maneira justa).
Veja bem, não estou aqui para dar uma lição sobre como as coisas funcionam no mundo espiritual, ou seja lá o nome que deem a isso, mas confesso que sei um pouco mais que estes charlatões que acreditam se comunicar com os mortos. Ao meu ver, tais criaturas que flutuam ao nosso lado, como um balão de gás, ora parecidos com pequenos embriões, ora com seres humanos formados, apontam o que realmente somos.
Se somos de fato, verdadeiros ou falsos.
Bons ou maus.
O banqueiro Amilcar Tonon já havia se referido a algo parecido quando eu era apenas um moleque. Disse num jantar de família que os vemos assim, porque é como nossos olhos mortais o veem. "Do lado de lá, a coisa é bem diferente" ele murmurava, enquanto bebericava seu cafezinho na boulangerie da Rua Santa Catarina. Acredito nele, porque o pobre homem já entrou em coma e sabe o que diz.
Felizmente, o espaço finito entre nascer e morrer, é apenas um segundo no cosmos espiritual, de modo que uma pessoa, mesmo vivendo uma centena de vidas humanas, pode ter mais que um mísero reflexo acorrentado a seu corpo físico.
Saber destas coisas me transformou num homem tenso e apático, incapaz de me relacionar com qualquer pessoa. E olha que isso às vezes gera uma certa contradição entre imagem e atitude. Porque fisicamente sou um sujeito muito agradável. Traços sicilianos, sobrancelhas libanesas espessas e charmosas, além de um porte atlético e magro. Talvez a única pessoa neste mundo que pode me entender é o coveiro Covas. Ele está sempre ao meu lado (quando não está enterrando alguém) e simplesmente tem sempre uma opinião sensata sobre o fenômeno.
Como conheci esse adorável brutamontes? Talvez seja melhor que eu conte mais tarde.
A questão é que só podia contar com Covas para me tirar dessas enrascadas, mas não para me ver livre de espectros "acompanhantes" e "integrados", o que, de fato, não me deixava alternativa senão apodrecer em meu pequeno escritório na Cidade.
Para onde aquele carro nos levava, diga-se de passagem.
O escritório de advocacia de meu pai ficava a duas quadras do fórum. Um sobrado espremido por dois edifícios de tijolos aparentes.
Uma escada muito estreita levava à porta da rua, cujo hall se abria em "L" como um corredor encrencado. Ali, havia uma porta de madeira simples que dividia minha sala com um espelho pendurado nela, e já havia meu nome pintado em letras garrafais na madeira.