Como não se perder no escuro

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"Sandra, aqui é o Raul. Eu preciso que você me ligue. Eu não sei onde 'cê 'tá... Preciso que me ligue agora. Por favor."

Aperto o passo. O ponto de ônibus onde a garota estava já foi tomado por outras pessoas. Pessoas mais velhas, mais cansadas, menos inocentes. O tráfego parece mais intenso, também, as buzinas se multiplicando pela rua escura.

Quando eu giro à direita na esquina do DP, meu corpo todo congela. Por um momento a mais do que eu gostaria, eu sinto o sangue correr forçosamente pelas minhas veias, sinto meu coração pulsar e algo gelado e muito denso girar dentro do meu estômago.

O posto de gasolina na esquina, o semáforo, os postes nas ruas, o próprio DP: está tudo mergulhado numa escuridão densa demais para ser normal. Uma onda fria corre a minha espinha e eu engulo em seco, limpando a garganta.

Sinceramente — eu não entendo a minha reação. Forço um primeiro passo, depois um segundo, então um terceiro em direção ao portão de entrada da delegacia. No meu bolso, o celular de Jaqueline Rocha Fibreira, a sobrinha morta de Augusto, começa a vibrar.

Meus olhos se arregalam.

"Alô?"

"Oi, Agente Marques." E a voz feminina do outro lado da linha me parece conhecida — mas eu não sei dizer exatamente de onde. Um frio percorre minha espinha.

"Quem é? E como 'cê conseguiu esse número?"

Ela suspira. "Olha, eu meio que tive uma perda na família essa semana então meu humor não 'tá dos melhores. Vamos acabar com isso de uma vez. 'Cê pode me chamar de Rafa, se quiser. Mas não é como se a gente fosse se encontrar." A cada r, a cada palavra o sotaque do interior de São Paulo fica mais e mais claro.

Eu levanto uma sobrancelha. "O que 'cê —"

"Agente Marques, você e a Investigadora Farias 'tão cometendo um engano imenso. E eu tenho certeza que 'cê já percebeu isso."

Franzo as sobrancelhas. "Olha aqui—"

"Espera meu, deixa eu terminar!" Eu pigarreio, engolindo o resto da frase. Numa voz firme a garota continua: "Quando eu desligar, você vai abrir o whatsapp instalado nesse celular. Você sabe o que é isso, certo?"

"É claro que — "

"Ótimo. Eu vou te enviar um áudio. O último áudio que eu recebi da Jaque antes dela... se matar. 'Cê deve ter visto que o celular dela tá todo muito bem limpinho, né? Bom, agradeça ao seu time no IML por isso. Por sorte eu ainda tenho minha cópia aqui."

"'Cê 'tá me dizendo que tem policial no IML destruindo provas?!"

"Só de casos como esse..." ela suspira, mas continua antes que eu possa dizer alguma coisa. "Ouça o áudio, Agente Marques. Você vai saber o que fazer."

Ela desliga. Eu ativo o plano de dados do celular; o aparelho apita. Um momento — só por um momento — eu hesito. Então eu aperto o botão, colando o celular no ouvido.

'Rafa, avisa o Augusto que eu vou precisar ficar um tempo aqui ainda. Esse negócio do Rocha não conseguir apagar a mulher tá me deixando nervosa, eu não gosto da cadeira de contenção...'

Levanto as sobrancelhas. Então sim, eles eram os culpados pelos sequestros. E se 'apagar' tivesse outro sentido, seriam culpados pelas mortes também.

'Eu vou ficar aqui perto ainda pra avisar a família que a gente tem a mulher. Se for só outro caso de poder adormecido e eles não souberem de nada eu volto ainda hoje, mas caso —'

Franzo as sobrancelhas. 'Poder adormecido'? A voz feminina dá lugar a um som arrastado de madeira sendo empurrada, depois passos.

'— Caso as outras duas sejam positivo, eu peço reforço. Mas eu não acho que seja o caso, tô confiante que vai ser tranquilo. Vou entregar a rosa e a adaga, só pra garantir, mas...'

O Curioso caso de Síria Vasconcelos (completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora