Era meia-noite e Cassandra ainda não dormira.
Não era hora de criança estar acordada, certamente algum adulto deveria ter se certificado de que ela estava bem e se dormia em paz. Mas Cassandra, aos seus 11 anos, era mais adulta do criança.
Mesmo que qualquer pessoa que passasse por ela tivesse a decência de observar a sua existência – mesmo simples, ainda importante – veria apenas uma menina magrinha, de pele escura, cabelos negros alisados à força com químicas que não deveriam estar na cabeça de uma criança, olhos grandes e escuros que enfeitavam como contas um rosto de feições graves, mas delicadas.
Deitada ali, em sua pequena cama, perdida em meio a lençóis já desgastados, parecia uma criança sonhadora que tinha uns seis anos. Mas a mente de Cassandra não divagava sobre contos de fadas, heróis ou Disney. Os seus ouvidos estavam atentos no barulho lá embaixo. Uma criança também não deveria escutar aquilo.
De olhos arregalados e as mãos, já cansadas de tampar os ouvidos, agora apertavam a boca, Cassandra escutava panelas sendo jogadas no chão, vidros se espatifando. E sons de correria. E tapas. Lamentos. Chutes.
Cassandra sabia muito bem o que acontecia sempre que Ricardo – com o seu barrigão de cerveja, olhos esbugalhados, cabelo mal-cortado – chegava de viagem. Mamãe apanhava. E apanhava muito. Quando não, era só felicidade. Uma felicidade que seria expulsa pela janela e trancada no lado de fora se mamãe falasse algo que não lhe agradasse, se atrasasse a comida ou se fosse vista conversando com algum homem. Aí, mais surra.
Cassandra alisou o machucado em seu braço. Ela também tinha apanhado naquele dia. Mas não como mamãe naquele exato instante.
Passos pesados subiram pela escada e um resmungo encheu o corredor. Cassandra encolheu-se ainda mais, pressionando a cabeça contra os joelhos e sentindo as lágrimas lavando-lhe a pele. Queria descer, queria ajudar mamãe a levantar. Mas sabia que não devia, segundo mamãe "aquilo não era da sua conta", que era "assunto de adultos", que "fosse uma boa menina estudasse e nunca dependesse da porra de um macho".
Cassandra não dormiu naquela noite. Nem sabia se também não dormiria na próxima.
Cassandra observou a mãe. Ela não tinha nenhum hematoma aparente. Por sua longa experiência com Ricardo, sabia que suas pernas deviam estar roxas. Nenhuma falou nada quando Cassandra ia comendo lentamente o seu pão.
Instantes depois, Ricardo desceu as escadas e imediatamente o ar ficou tenso, apertando a garganta da menina. O homem sentou-se, enquanto a mãe olhava para o outro lado. Ele lançou poucos e frios olhares em sua direção antes de pôr café em um copo de requeijão. Mamãe não gostava daqueles copos, mas fazia tempo que ela se cansara de repor as xícaras quebradas.
Cassandra sentiu os dedos começarem a tremer. Embora fosse uma menina relativamente aberta, em momentos como aquele, tudo que queria ser era uma estátua, fria e sem emoções. Queria ser vento e sumir dali, mas seus dedos tremiam de medo, a xícara de café ainda estava cheia, precisava ir para a escola, precisava de borracha nova – Luiz, aquele infame, tinha roubado as suas – e não queria medir dinheiro para a mãe. O ônibus em dez minutos passava no ponto, queria pedir para que mamãe ou mesmo Ricardo fosse deixa-la no ponto, por que os caras que passavam o dia todo na calçada ficavam gritando-lhe putarias e ela estava com medo de ir só...
Não foi uma surpresa quando se engasgou com o café, derramando-o todo sobre sua farda. E nem quando Ricardo deu um murro na mesa.
-Sua nojenta, olhe o que fez!
A tensão no ar era gás de cozinha e o café derramado era a fagulha de um cigarro. Tudo explodiu em um caos. Mamãe tentando segurar Ricardo enquanto ele gritava palavrões.
-Essa neguinha imbecil cuspiu café para todo lado! Só podia ser sua filha, sua porca.
-Deixa a menina, Ricardo. Deixa, ela é só uma criança. –gritou a sua mãe com novas lágrimas descendo pelo rosto.
-Criança, uma porra. Daqui a pouco vai estar por aí...
Cassandra correu escada acima pegou a mochila e saiu correndo novamente. Não virou a cabeça para ver a cozinha ser virada de ponta cabeça de novo.
Não escutou os homens gritando com ela. Dois carros quase a atropelaram. Tropeçou em calçadas. Subiu no ônibus e ignorou as crianças que riam de sua roupa suja e de suas lágrimas. Poucas crianças lhe lançaram olhares tristes, pois certamente suas mamães também apanhavam e elas tinham que sair de casa correndo.
Ao final do dia, voltou com um bilhete escrito pela professora na sua agenda. Dizia que iria denuncia-los ao conselho tutelar se ela não passasse a ir para a escola limpa. Não havia ninguém em casa. Havia cadeiras caídas, mesas sem pano, copos e pratos quebrados por todo lado. Cassandra fez o que pôde para limpar, mas sabia que logo sua mãe chegaria e diria que em vez de dar dando uma empregada, deveria estar cuidando de dever de casa. Que teria que estudar, ir para a universidade e ser uma juíza rica que nunca dependesse de ninguém.
Assim, Cassandra fez todo o dever de casa. Duas páginas de matemática e uma de biologia. Pegou um livros velhos da Tia Suzy e leu um pouco sobre mamíferos. Deu nove da noite e mamãe ainda não havia chegado. Será que estava na casa de uma vizinha? Ou tinha ido para a Tia Suzy? Aquilo era impossível. Mamãe nunca a deixaria sozinha.
Queria sair para procurá-la, mas assim que pôs os pés para fora o medo lhe gelou as veias. Não podia sair sozinha de casa durante a noite. E já era nove horas, boas garotas tinham que dormir cedo para poder estudar muito e serem juízas ricas.
Cassandra arrumou-se para a noite e se enrolou nos lençóis velhos. O sono demorou a chegar.
E foi-se rapidamente quando acordou com alguém puxando-lhe os cabelos.
-Sua merdinha. –Ricardo grunhiu, o bafo de cachaça. –Filha daquela vagabunda desgraçada. Eu sustento essa casa e é assim que tua mãe me trata. Ela tá lá no hospital agora e a polícia atrás de mim.
Mamãe estava no hospital? Imediatamente Cassandra imaginou-a toda quebrada e machucada. A raiva encheu-lhe os olhos escuros de lágrimas.
-Não ouse me olhar assim. Essa comida que enche esse teu bucho... sou eu que pago. Sou eu. –ele bateu no peito antes de jogá-la com força na cama. –Eu fiz de tudo por vocês duas e ela me denunciou!
Ele continuou balbuciando enquanto mexia nas coisas dela, derrubando tudo no chão. Aquele desgraçado tinha batido em mamãe. Batia sempre e sempre.
-Então some. –ela grunhiu.
-O quê?
-Suma. –ela falou mais alto levantando-se.
-Sua cretina, vou lhe dar a surra...
-Suma! –repetiu.
-Vou lhe dar a surra que você nunca levou. –ele rosnou começando a tirar o cinto.
-Suma. –o seu grito agora se elevava, ela queria que ele sumisse, ou melhor, fosse para o outro lado do mundo. Para a China!
O braço dele se ergueu. Ela gritou "suma" mais uma vez. E desceu, o cinto junto.
E antes do cinto estalar contra o seu rosto, desapareceu.
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Uma Herança de Ódio e Magia
Teen FictionA comunidade bruxa do Brasil está em uma crescente tensão: cada vez mais criaturas mágicas avançam contra os não-bruxos, pondo em risco o tratado de sigilo, mas como também, entre os bruxos, a herança histórica de ódio e repressão entre os povos mág...