Ele não era o garoto certo. Meus pais disseram. Era muito velho, vagabundo, tem tatuagens, mas não tem futuro. E assim acabou um relacionamento que mal havia começado.
Se eu o amava? É claro, eu nunca digo um "eu te amo" sem realmente amar, e ele era o terceiro garoto a quem eu tinha dito, os outros dois eram meus irmãos mais novos. A torcida fora de casa, para ficarmos juntos, era enorme, vários amigos e conhecidos, sempre nos achavam um casal legal, não a garota bela, recatada e do lar que meus pais sempre quiseram, eu sempre dei conta de mim. Os pais não querem o melhor para nós, querem para nós o que eles não puderam ser, mas não se importam com nossa felicidade. Não acha? Experimente dizer as seus pais que quer fazer curso de artes na faculdade, se eles te apoiarem de todo coração sem fazer um discurso para acabar com suas expectativas, agradeça de joelhos.
Muito tempo se passou, até meu aniversário de 18, em um sábado, saímos para comemorar, toda família e amigos, tentando esquecer da minha recente tentativa de suicídio, o exaustivo trajeto até um hospital mais perto, todo sangue e terror, noites mal dormidas. Fomos para um clube, não era festa particular, havia bandas e muita gente, sempre circulando e fazendo um barulho infernal enquanto as menores bandas se apresentavam.
Ele estava lá, nunca perdera uma festa, esta também não faltaria, estava bêbado, muito bêbado, mas parecia mais do que isso, mais um momento e pude reparar uma alteração total em seu semblante. Estava usando drogas, mais alterado do que o normal, magro como nunca tinha visto antes, e todo desajeitado, torci como nunca para não ser o motivo de todo aquele trauma. Usava a blusa que eu mais gostava, ele a vestira no nosso último abraço, eu estava cansada e triste, mas arranjei forças para fugir de casa e abraçá-lo, e desde esse dia, nunca mais. Ainda lembro o seu cheiro.
Me viu no meio de todas aquelas pessoas, com aqueles olhos de águia que não ficavam embaçados nem no maior estado de alcoolismo. Veio cambaleando, esbarrando nas pessoas que o retribuíam com empurrões, xingamentos ou olhares feios. Trocava as pernas. Meu pai estava perto, senti o cheiro do perigo misturado com a vodka. O rapaz não o viu, ou teve muita coragem, me envolveu e seus braços e parecia não quererem soltar mais. E naquele abraço senti como se uma força maior e bondosa me envolvesse, como um pai que quer cuidar de sua filha, porém bêbado e suado. Beijou-me intensamente, passando sua mão por todas as curvas do meu corpo, onde antes já havia percorrido com seus lábios.
De repente, foi tirado de perto de mim num impacto, os olhos de meu pai estavam cheios de fúria. A bomba havia sido implantada. Começaram as provocações e logo a agressão havia deixado de ser verbal, havia gritos e uma multidão que corria, gritava e filmava, mas como o episódio "White Bear" da série Black Mirror ninguém se mobilizava para impedir coisas piores, só filmavam. Como numa explosão de adrenalina, tomei coragem suficiente para jogar um garrafa de vidro, que se partiu nos dois, pois já não havia como detectar quem era quem. Sempre gostei da comunhão de corpos, quando não há mais divisão de pessoas, e dois se tornam um só, mas isso em outras ocasiões. Agora havia sangue. Bastante sangue.
Se separaram, cada um para um lado. O meu pai, no meio de todo o caos retirou uma arma da cintura, não pensou duas vezes. Bang. Não fui egoísta. Não pensei em mim. E lá estava eu, no chão, ensanguentada e com uma bala no coração.
Ele não mirou em mim. Eu fui rápida.
Chamaram a polícia, ambulâncias, meus pais estavam em choque. E aquele que quase fora vítima, fugiu.
Só um coração novo me salvaria, e o fugitivo resolveu aparecer no hospital. Se trancou num dos quartos, em que eram guardados produtos de limpeza. Bang. Ele era doador de órgãos.
Sonho todos os dias que ele vem me ver, eu abro meu peito, tiro o coração com as mãos e o entrego. Agora tomo calmantes, tenho que cuidar do meu ,melhor ou pior, presente de aniversário.
VOCÊ ESTÁ LENDO
WHO WILL SURVIVE?
Short StoryVárias histórias desconexas que buscam explorar a mente ao propor finais totalmente excêntricos