Norman

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- Como foi sua infância?

Sempre odiei essa pergunta. Em entrevistas de emprego ou odiosas apresentações entre pessoas novas, respondo que foi "normal", um garoto comum, pai amoroso, boa disciplina. Quando encontro alguém que me conheceu na infância, minha resposta é "não lembro muita coisa". E tenho de arcar com olhares de pena, ou alguns a balançar a cabeça ao dizer "eu sabia que era só imaginação".

E como foi minha infância? Terrível.

Ninguém acreditou em minhas palavras quando garoto. Discussões em família, vizinhos a fofocar que o pequeno menino da casa azul era maluco. Passei pelos mais variados especialistas que me receitaram medicamentos diversos que fingi tomar. Cheguei até mesmo a ser internado, e foi então que percebi que teria de mentir.

Primeiro fingi confusão com os fatos. Isso me rendeu grandes hematomas, pois meu pai ficou furioso, a acreditar que eu só queria atenção.

Depois, simplesmente passei a afirmar com convicção que não me recordava de nada.

Não tardei a acreditar que desta forma era melhor. E mesmo que as lembranças fossem terríveis, a gerar pesadelos que me abalavam no meio da noite, joguei tudo para debaixo do tapete da minha mente e nunca mais falei no assunto.

E, com o passar dos anos, acabei por enganar a mim mesmo. Eu sabia que minha infância tinha sido terrível e evitava pensar no assunto.

Devido ao medo, acabei por crescer sem confiar em ninguém, a preferir minha própria companhia. Um homem normal, com um emprego entediante (telefonar ao cliente, escutar desculpas ou desaforos, anotar na planilha, tentar outra vez), a morar em um cubículo que sequer poderia chamar de casa (cozinha, sala e quarto tudo em um só cômodo). A se arrastar pelos dias, evitar pensar na vida, arranjar desculpas para não ter de ir em reuniões de trabalho ou família.

E como em todas as noites, adentrei meu minúsculo apartamento sem querer pensar em nada. Acendi a luz e me deparei com meu reflexo. Olhos escuros, cabelo castanho, magro, tamanho médio, acredito que não sou feio, tampouco um galã da novela das nove. A respirar fundo, virei o rosto, e então meu coração acelerou.

Eu nunca tive tanta coisa, então era fácil deixar o lugar arrumado. E o envelope em cima da mesa não estava lá antes. Nem recordava a última vez que comprei um envelope na minha vida. Tentei fingir que o papel chegou voando pela janela e, misteriosamente, pousou ali. Contudo, minha certeza era outra.

Quase sem respirar, tranquei a porta. Depois me apressei ao banheiro para certificar que não havia ninguém. Retornei à mesa, olhando o envelope por todos os lados. Minhas mãos tremiam ao segurar o papel e, com alguma dificuldade, abri e li a pequena mensagem.

"Eles voltaram".

O papel deslizou pelo ar, pois minhas mãos perderam as forças.

Para algumas pessoas, aquela mensagem poderia não significar nada. Outras considerariam brincadeira de alguém. Mas eu estremeci. Minha infância retornou aos meus pensamentos com força. O medo me envolveu frio. As lembranças não eram tão vívidas, a maioria dos acontecimentos nebulosos, as pessoas como vultos, a não ser o meu ato.

E ali, imóvel em meu apartamento, de olhos fechados, revivi em poucos segundos aquela noite chuvosa e terrível.

Pois a verdade é que, quando garoto, eu matei um homem.



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