Naquela noite, mal pôde pregar seus olhos cor de mel, pensando em inúmeras formas de fugir daquele lugar, mesmo que aquela sensação de liberdade durasse apenas um dia, mas o que vale é a tentativa, e o sucesso ou o fracasso é uma consequência disso. Levantou-se, apoiando os braços na janela, observando dois servos conversando enquanto cuidavam dos cavalos, todos — absolutamente TODOS — de raça, treinados para participar de corridas e, como sempre, o Conde faturava, até em cima de um simples animal, e isso cortava o coração de Isabel, arrancando-lhe um suspiro pesado de seus lábios rosados e um pouco ressecados, já que havia bebido pouca água, sem contar que queria cuspir tudo na cara de Henrique, junto com o ódio que nutria por ele desde que era pequenininha.
No quarto ao lado da mais nova, Júlia encarava seu guarda-roupa, com uma expressão nitidamente confusa, como se estivesse pedindo ajuda à sei lá quem, sendo que o horário no relógio de pulso marcava cinco e vinte e quatro da manhã. Estava ansiosa para o seu segundo encontro com Vinicius, o filho mais velho da família Duarte, que logo herdaria o título de Conde de seu pai, e saber que aquilo agradaria Henrique a deixava feliz, embora não soubesse absolutamente nada sobre seu futuro noivo além do nome e sobrenome, e claro, o tamanho da fortuna. As portas do canto esquerdo mostravam vestidos mais comuns, como os que ela utilizava para jantares com vizinhos ou amigos de longa data, mas não pense que são desprovidos de luxo, jamais. Todos deveriam estar impecáveis. Já à direita, as peças mais belas, que quase pediam para serem usadas, e levada pela vaidade, escolheu um de cor vinho, com um decote um pouco abaixo da clavícula, exaltado por rendas branquinhas, assim como as que estavam na parte debaixo, nos cantos e também na barra, dando um toque mais suave e romântico para a veste, que com certeza a deixaria linda, combinando com seus fios chocolate, os lábios rosados e finos na parte superior e os olhos brilhosos, buscando bondade, e na opinião de Isabel, as vezes sua irmã não conseguia enxergar maldade, e um exemplo que comprovava isso tem título, nome e sobrenome: Conde Henrique de Alcântara.
Falando nele, o próprio estava, como sempre, humilhando um de seus servos, parecendo mais uma criança querendo irritar alguém. De cinco em cinco segundos, Henrique derrubava um pouco de café no chão de madeira, chamando a empregada baixinha, maltrapilha e franzina, pedindo que ela limpasse, sem deixar de dar uma bronca por não fazer o trabalho corretamente. Era cruel, e aquilo o divertia de alguma forma, diminuindo cada vez mais quem estava ali somente para ter o que comer, enquanto o Conde esfregava na cara de cada um o quão rico ele era, seja usando as melhores roupas, forçando os filhos das empregadas à limparem seus sapatos, ou então garotinhos e garotinhas de nove ou oito anos sofreriam como se tivessem vinte. O apelido mais carinhoso que rodava por ali parecia título de um filme de terror: "Henrique, o Monstro", que inclusive fez Isabel dar boas gargalhadas.
A esposa descia as escadas, bocejando, franzindo o cenho com aquela cena, porém havia se acostumado, e o nojo que sentia do marido continuava guardado ali, bem escondido, ou então teria problemas caso decidisse se revoltar. Catarina não admitiria jamais que aquele homem cruel merecia algum resquício de amor de sua parte, e talvez de ninguém, mas o que ela poderia fazer além de o obedecer como um cãozinho? Embora quisesse acabar com aquela tortura, o medo que nutria de Henrique aumentava mais e mais, e depois de ser agredida ao tentar salvar a filha mais nova das mãos impiedosas do Conde, nunca mais tentou algo do tipo, e isso dava-lhe a sensação de ter errado como mãe.
– Bom dia, querido. – Arreganhou o sorriso mais falso, como fazia todas as manhãs, agradecendo mentalmente por ele ter cessado aquela humilhação com a pobre empregada Luísa, que talvez tenha sido uma mãe melhor para Isabel do que a própria Catarina.
– Bom dia. Hoje teremos um almoço com os Duarte. Chame a Isabel, se ela não quiser ir, vai se entender comigo. – Aquela frase soou como uma ameaça de morte, e engolindo em seco, a Condessa concordou mecanicamente, comprimindo os lábios delicados, segurando uma palavra não muito bonita que causaria belas bofetadas em seu rosto.
Mais tarde, por volta das onze e meia, Júlia terminava de se arrumar em seu quarto, penteando o cabelo mil vezes e inventando penteados que ela sequer sabia como terminar e acabava se enrolando toda, fazendo nós nos próprios fios, mesmo que uma das empregadas estivesse a ajudando nos últimos detalhes para que tudo esteja perfeito. O vestido de cor vinho fora lavado pela manhã após o café, que como sempre, se resumiu à um silêncio mórbido e um clima nada agradável, talvez de tensão pelo fato de que Isabel não poderia sequer descer para comer, e ela tampouco queria olhar na cara do pai sem lhe dizer poucas e boas. Catarina suplicava para que a filha mais nova saísse daquele quarto, e depois de muita insistência, Isabel abriu a porta, com uma cara de quem não havia dormido sequer dois minutos, o que não era mentira, rendendo-se graças ao desespero da mãe ao vê-la naquele estado. Estava tão mole e preguiçosa que apenas a deixou escolher suas roupas e a arrastar escadaria abaixo, ambas segurando o vestido para não rolar pelos degraus.
No gramado em frente à enorme residência dos Alcântara, uma mesa posta abrigava as duas famílias, e como de costume, o Conde Henrique e o Conde João Lucas sentavam na cabeceira, do lado direito, as esposas, logo depois o filho(a) mais velho e então, o mais novo. Não precisava dizer que Isabel estava odiando tudo aquilo, e em nenhuma hipótese fingiu ser simpática para com Vinicius, que respondia sua irmã mais velha de forma seca, cortando qualquer chance de que um assunto possa surgir ali.
– E então, um brinde aos noivos! – Para aliviar um pouco da tensão que se instalara naquele almoço que estava em um completo silêncio, João Lucas ergueu uma taça de champanhe, sendo acompanhado pelos demais, exceto por Isabel, que mantinha o olhar fixo em seus próprios dedos, que pareciam mais importantes do que o que acontecia ao redor.
– Isabel... Não seja mau educada. – Henrique sussurrou num tom frio, sem mexer a boca.
– Mau educada? Você obriga a minha irmã à se casar com alguém que ela nem conhece e eu é que sou mau educada?! – Pôs as mãos sobre a mesa, que tremeu levemente com a força usada no pequeno baque.
– Ora... – O Conde forçou um riso, olhando para Catarina e Júlia, que de imediato o acompanharam. – Não ligue pra ela, crianças são assim mesmo, falam besteiras sem querer. – Deu ênfase à frase final, fechando a cara como quem iria espancar Isabel nos próximos dois segundos.
– Não sou criança, e o que estou falando é verdade! – Irritada e incrédula por não ter apoio nenhum naquele mar de cegos, escravos das vontades de Henrique, a mais nova seguiu para os estábulos, correndo o máximo que podia para que ninguém a alcançasse, dando uma última olhada por cima dos ombros, encarando as expressões assustadas, provavelmente condenando seu comportamento.
Ofegante, parou assim que percebi estar perto dos estábulos — o cheiro por ali não era dos melhores —, colocando as mãos nos joelhos descobertos por aquele vestido branco de cetim, com um laço fino e vermelho nas mangas e também contornando sua cintura.
– O que faz aqui, senhorita? – Não precisava ser um gênio para perceber que alguém se dirigia à ela com tamanho sarcasmo, e ao erguer suas orbes, encarou um rapaz que nunca tinha visto antes, ou então não havia prestado muita atenção em si.
Os ombros largos e fortes, assim como os músculos de seu peitoral e abdômen que quase atravessavam aquela regata encharcada de suor, talvez por trabalhar o dia todo debaixo daquele Sol quente, ainda mais fazendo uma atividade repetitiva; o rosto de traços fortes, boca carnuda, maxilar marcado e as íris negras, capturando as bochechas de Isabel, que rapidamente se tornaram rosadas. Estava claramente envergonhada, já que nunca vira um homem daquele jeito, tão... Tão perto. Os fios castanhos rebeldes e aquele sorriso estavam fazendo suas pernas tremerem.
– Hã... Eu... Estou só andando por aqui. Qual seu nome?
– Achei que não falasse com servos. – Com a destra, o rapaz de pele morena se aproximava cada vez mais, e para disfarçar, Isabel começou a se abanar e resmungar algo sobre a temperatura.
– Eu não sou desse jeito, e sim meu pai.
– Acredito em você. – Riu-se, de modo que encheu a Viscondessa de vontade de voar em seu pescoço. – Me chamo Leonardo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Viscondessa
RomanceA filha do Conde estava cansada de viver sob as ordens do pai controlador, que agora atingira seu ponto mais fraco: o amor. Brigas e a necessidade de ser livre habitam essa história, será ela um romance ou uma tragédia?