Deus que a perdoasse, mas, atrás da vitrine daquela joalheria, estava o verdadeiro sentido do Natal.
Na vitrine daquela loja de vestidos também. E, nossa, com certeza naquela com os sapatos com 50% de desconto. Metade do preço! Até o menino Jesus compraria um. Victória tinha quinze anos e estava encantada em como o shopping da cidade era por inteiro uma grande celebração do nascimento do Salvador, com luzes piscando, faixas enfeitando pilastras, presépios montados e uma árvore de Natal gigante com uma estrela dourada na ponta. Quer dizer, todos estavam ali felizes carregando várias sacolas coloridas e brilhantes, sorrisos estampados no rosto, pensando em cada membro da família na hora de escolher o que comprar. O que mais Jesus poderia querer? Alegria, união, esperança, estava tudo ali. As pessoas só precisavam se esforçar um pouco para enxergar.
Ela mesma estava encarando uma estante numa livraria cristã pensando em quais livros levar para os pais. Acontecia uma promoção excelente de livros a 10 reais que não poderia ser desperdiçada, mesmo que os pais não fossem muito de ler. Bom, seria um favor a eles, porque leitura sempre edifica e tal. Pegou dois livros aleatórios na estante e nem sentiu ter enfrentado a fila e passado pelo caixa. Só tinha mente para as argolas douradas na vitrine da joalheria.
Victória não fazia ideia de quem fora o primeiro a dizer que presentes não tinham nada a ver com o significado do Natal, mas tinha certeza que essa pessoa só ganhava meia, perfume fedido e artesanato no amigo oculto. Ela ganharia argolas banhadas a ouro. Ok, seria um presente dela para ela mesma, mas ninguém tinha nada com isso. O aniversário de Jesus era tão bom! Todos ganhavam!
O celular de Victória tocou antes que a culpa de gastar tanto dinheiro do pai num par de brincos - mas brincos lindos! - passasse.
- Filha, onde você está? Você e sua prima se perderam?
Que prima, gente?
- Hã?
- Victória, a sua prima Bárbara. Onde vocês estão que não chegaram até agora? Faz mais de uma hora que você saiu pra buscar ela no ponto!
- Já estamos chegando em casa, mãe. Calma! Só tivemos uns imprevistos. Está tudo bem.
- Em nome de Jesus, vocês não inventem de aprontar no Natal. E cuidado com a sua prima! Não aceite nada que ela te der e muito menos vá com ela a lugar algum.
- Credo, por que isso?
- Você sabe, eu não vou dizer em voz alta. Aquilo que a sua tia contou. Cuidado.
- Fica tranquila, mãe. Como eu disse, está tudo bem! Beijos, preciso desligar.
Não estava tudo bem. Meu Deus, nada bem. Victória estava realmente tendo imprevistos. O primeiro imprevisto era que ela esquecera completamente de que tinha saído de casa para buscar sua prima na cidade e não para comprar coisas com o cartão de crédito do pai sem ele perceber. O segundo era que o ônibus da prima estava demorando tanto para chegar que ela resolveu dar um pulinho no shopping para olhar as vitrines. Mas tinha sido há quanto tempo? Meia hora atrás? Tinha ficado maravilhada com a magia do Natal no shopping. Só Jesus na causa!
Saiu do shopping desesperada para voltar para a parada do ônibus o mais rápido possível. Agora, aquelas pessoas felizes e as famílias de mãos dadas estavam irritantes obstruindo seu caminho. E, nossa, eram tantas! Ela tentava se esquivar das sacolas de compras, dos pães de rabanada e do papai noel pedindo dinheiro. Acabou trombando com alguém naquela horda furiosa e quase deixou a sacola com seus brincos e os livros cair. Victória se deu conta de que já havia escurecido. Era fim de tarde, mas o céu estava claro quando saiu de casa e entrou no shopping. Não era possível que tinha ficado tanto tempo assim deslumbrada com as lojas. Era? Só pensava na prima esperando sozinha numa cidade que não conhecia, sem saber para onde ir e sem ter como ligar para ninguém.
Se seguisse pela rua principal, só chegaria no ponto no Natal do ano que vem. Era muita gente fazendo compras de última hora! Em seis horas, estariam todos ceando com suas famílias. Resolveu pegar um atalho por uma ruela suja que ficava entre duas lojas. Victória hesitou um pouco antes de seguir por ali, pois estava parcamente iluminado e ela não via mais ninguém. Que Deus fosse com ela. Nem era o vale da sombra da morte nem nada, afinal.
Vinte passos naquele beco escuro e era como se o arrebatamento tivesse acabado de acontecer. A rua principal era barulhenta, mas ali havia quase silêncio absoluto. As paredes eram feias, porque as lojas só se importavam em deixar as fachadas enfeitadas. Nem um pisca-pisca nas laterais! Tomou um susto quando alguém pulou de trás de umas lixeiras fedorentas apontando uma faca para ela. Gente!
- Passa tudo e não grita!
Ela ficou tão em choque que não conseguiu fazer outra coisa a não ser obedecer. Entregou celular, carteira, os livros, a sacola com os brincos - QUE MORTE HORRÍVEL- e suas pulseiras. O garoto, porque agora ela via que era apenas uma criança, não baixou a guarda nem por um segundo enquanto recolhia seus pertences. Ficava com a faca apontada para ela. Ele devia ter apenas uns dez anos! Victória achou um abuso ter medo daquele pivete. Ela não ia tentar o Senhor Deus dela, pois não era burra. O ladrão era uma criança, mas faca cortava na mão de quem fosse. Resolveu encará-lo, olhou o menino bem no fundo dos olhos. Ele não tinha vergonha alguma. Usava roupas velhas e sujas, estava descalço, pisando naquele chão ainda mais sujo. Os pés dele tinham uma aparência horrorosa de andar sem chinelos. Assim que tomou tudo das mãos dela, deu um grito para que ela continuasse até o fim do beco sem olhar para trás. Victória estava tremendo contra sua própria vontade, mas caminhou apressada com o coração na boca. Atravessou o beco voando. Quando chegou ao final, foi tomada por uma coragem débil e olhou para trás. O menino não estava mais lá.
Tinha levado tudo dela, até a magia do Natal.
Victória estava desnorteada. Uma criança! Se assustou com pessoas passando na calçada, mal tinha notado que estava de volta às luzes. Tudo isso porque fora estúpida para entrar naquele beco também estúpido.
Será que Jesus estava satisfeito com a lição dada?
Caminhou revoltada para o ponto de ônibus. Estava indignada com o ladrão, com Deus e principalmente com ela mesma. Viu a prima sentada sobre a mala sozinha ao lado de uma placa e sua revolta se suavizou.
- Vic! - A prima se levantou e foi até ela - Está tudo bem? Você está com uma cara péssima, o que houve?
- Ai, Barbie - Victória a alcançou e chorou abraçando forte sua prima favorita.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Aquilo Não Estava Certo
SpiritualVictória tem 15 anos e sabe muito bem o que esperar do Natal. Presentes! Comida! Família reunida! Mais presentes! O aniversário de Jesus era ótimo, todos ganhavam. A coisa toda muda de figura quando sua prima favorita aparece para a ceia. Agora todo...