Parte 4

194 46 26
                                    

Foi depois que um presbítero amigo da família leu uma palavra em sua Bíblia sobre o nascimento de Jesus e que a mãe de Vic encerrou a oração para iniciar a ceia, já alguns minutos depois da meia-noite, que Bárbara apareceu. Ela estava deslumbrante, como sempre, num vestido azul escuro brilhoso, muito bem comportado. Todos em volta da mesa pararam uma hora ou outra para olhar para a prima do interior, exceto o pai de Vic, que mal encarava Barbie. Era como se ela não existisse na mesa. Enquanto isso, a mãe ficava forçando uma conversa com todos como se quisesse distraí-los da presença da sobrinha. Victória estava sentada entre uma tia e um irmão da igreja, de frente para Barbie na mesa, tentando separar as passas no arroz, meio agoniada com a situação toda. Ela podia sentir a tensão que fluía da mãe e do pai.

Aquilo não estava certo.

Victória percebia as pessoas trocando olhares, algumas cochichando... Para completar, tinham convidado os pais de Amanda e óbvio que eles trouxeram a peste junto. A menina tinha a mesma idade de Vic. Até tinham tudo para serem amigas, mas, sei lá, Vic não acreditava que aquilo pudesse acontecer. Amanda estava sempre se metendo onde não era chamada e fazendo Victória se sentir péssima como ser humano. Tinha contado isso para a mãe uma vez, que respondeu com um "Como você é invejosa, Victória!". O superpoder de fazê-la sentir-se péssima funcionava mesmo quando Amanda não estava presente. Era incrível. Amanda deu um sorriso para Victória que imediatamente se sentiu culpada pelos pensamentos não cristãos que estava tendo.

Bom, talvez o verdadeiro sentido do Natal era esse mesmo, suportar as pessoas. Seu pai carrancudo, sua mãe nervosa, o tio do pavê, as tias fofoqueiras, os irmãos da igreja... Ela ainda estava aflita por Barbie, mas a própria parecia alheia à toda situação, apenas ceava na paz. Dava para tolerar. Victória queria as argolas de ouro ou pelo menos artesanatos fofinhos como presente, mas o presente de Deus para ela deveria ser tolerância. Era legal também. Com todo mundo se respeitando e tolerando, a noite ia terminar bem.

Conversas sobre tudo e coisa nenhuma aconteciam na mesa, nada de muito interessante, mas foi uma pergunta corriqueira de uma tia que fez Victória gelar.

- E os namoradinhos, florzinha?

Ela apenas riria e desconversaria - pelo amor de Deus, só tinha quinze anos! - se a tia houvesse perguntado para ela.

Mas foi para Barbie.

O pai engasgou, a mãe deixou uma faca cair no chão, as conversas cessaram, Vic ficou com o garfo a meio caminho da boca. Ela definitivamente não faria mal se aprendesse uma coisinha ou outra com Barbie sobre manter a classe.

- Não estou namorando ninguém - Ela respondeu e sorriu dando de ombros.

- Nenhum rapaz se interessou por uma moça tão bonita?

A tia não sabia calar a boquinha.

- Bom, eu não estou sabendo de nada - Barbie respondeu - Humn, com licença, preciso retocar minha maquiagem.

Barbie levantou graciosamente, mas não teve tempo de sair da mesa antes de ouvir o que Amanda disse em alta voz.

- Mas essa não é a prima sapatão da Victória? Claro que não ia ter namorado nenhum.

Foi um pandemônio, com várias pessoas falando ao mesmo tempo.

- Amanda! - A mãe da própria exclamou, horrorizada.

- Eu não sabia que era segredo, ué. Ela é sapatão. A senhora não me disse que não era para contar.

- Você não devia... Ah, meu Deus. Me desculpe, Sônia - A mãe de Amanda disse para a mãe de Victória. Vic estava chocada que a mãe tinha contado, sem necessidade nenhuma, uma coisa tão íntima que nem dizia respeito a ela!

Sônia olhou para o marido que a encarava irritado.

Barbie ficou sem reação dessa vez.

- Eu vou com você! - Victória disse e também levantou da mesa para tirar a prima dali o mais rápido possível.

- É capaz da Vic ser também, só andam juntas - Amanda disse.

Por que ela parecia sentir tanto prazer em ser assim???

- A minha filha não é desse jeito! - Foi o pai dela quem levantou a voz e todos na mesa levaram um susto - Eu juro, irmãos - Ele tinha virado para as pessoas da igreja - Ela recebe educação em casa e jamais faria algo contra Deus assim.

- A gente sabe que ela é bem criada, varão - falou o presbítero.

- Amanda, cale a boca, você sabe que a Vic é de Deus! - A mãe de Amanda a repreendeu.

Olha, que bom que todo mundo a achava um ser de luz, mas eles não ouviam as próprias palavras? Cada vez que alguém abria a boca para defendê-la era um tiro que ela tomava por Barbie. Que coisa horrível! A prima mais velha saiu andando para fora da casa, mas visivelmente perplexa. Vic ficou de pé encarando as pessoas na mesa.

- Não se preocupa filha, ela vai encontrar o caminho do Senhor - A mãe disse.

O que Victória queria berrar na cara do pai, da mãe, do presbítero e principalmente na de Amanda era DANE-SE A TOLERÂNCIA. Queria virar aquela mesa com as comidas todas e fazer todo mundo enxergar o que tinham feito com uma pessoa tão boa como Barbie. Foi no meio daquela revolta interna que durou apenas dez segundos que Vic entendeu o que Jesus faria.

Aquilo Não Estava CertoOnde histórias criam vida. Descubra agora