Menina-Flor

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     Ela sentia a lágrima escorrer, o corpo tremia e as mãos contraíam-se de raiva. O espelho retratava a dor daquela menina, menina bonita, de dor ardida, menina sofrida.
    O céu lá fora, céu nublado, curvava-se à imagem daquele anjo sem luz. As poucas estrelas, fugitivas da condenação das nuvens, reprimiam seu fulgor diante à tristeza da Rosa.
    Rosa bonita, Rosa menina, menina com nome de flor. Nome de flor pra expressar sua doçura, pra relembrar-nos a delicadeza de seus traços de rosa vermelha. Rosa, nome de flor do amor, nome de paixão, nome de flor com um caule cheio de espinhos. Rosa, menina vivida, menina que já amou, que já sorriu, menina de luz, que a maldade do mundo apagou.
    Ela derrubou o potinho, antes cheio de remédios, declaração de óbito que jazia na pia. Do choro desabrocham soluços, que empurram o corpo delicado da Rosa para o chão.
    Quem nunca sofreu, não entenderia a Rosa. E quem nunca amou, não me entenderia. Estava lá, a menina-flor, e as lembranças daquele dia voltaram na sua mente.
    "Trinta e três monstros violentaram a menina-flor", eles diziam, e Rosa lutava para não murchar. "Reguem a Rosa !", eu gritava, mas o mundo inteiro perdeu a sensibilidade para ouvir.
    Rosa, frágil de corpo e de alma, encontrava-se com o corpo largado no piso gelado, a pele apaixonando-se pela palidez, e a boca, antes rosada, deleitou-se com a escuridão do fim, a escuridão da fuga, a escuridão das memórias de uma menina-flor.
    As vozes na casa, agora mais altas, eram ecos dos meus gritos. Eu, mãe de Rosa, menina-flor, ganhei a missão de mulher-jardim. Mas esse mundo é inverno duro, e eu jardim de quintal, que qualquer vendaval revira.
    Abri a porta do banheiro, encontrei minha menina-flor, flor que o inverno do mundo murchou. As luzes lá fora, desafiando o luto do céu, indicavam que o carro da salvação apareceu.       "Apareceu tarde demais", eu pensava, sem forças para dizer.
     Puxaram-me dali, levaram minha menina-flor. Não precisaram arrancar suas raízes, trinta e três monstros do mundo já haviam feito o trabalho. Rosa, minha menina-flor, não sobreviveu pela metade. Uma flor não sobrevive sem nutrientes, e não há nutrientes longe do seu jardim.
    Eu, jardim de quintal num mundo de inverno duro, deixei-me observar a passagem das estações, tentando encontrar uma primavera.
A primavera não veio. Os invernos continuavam, de janeiro à janeiro, levando outras meninas-flores dos jardins dos quintais dos vizinhos.
    "Salvem as meninas-flores!", eu escutei um jardim gritar, e decidi acompanhar. "Imagine que lindo seria", lembro de pensar, "se todos os jardins lutassem por suas meninas-flores".
    Rosa, minha menina-flor, eu já havia perdido. Mas salvei Violeta, a menina-flor da vizinha, que salvou Margarida, a menina-flor da sua prima.
     O mundo de invernos duros disputava com a revolta dos Jardins, Jardins que queriam salvar meninas-flores, dos monstros que o mundo endureceu.
    Os Jardins ganharam, se você quiser saber. Temos agora primavera, verão, outono e até um inverno gostoso, inverno de abraços e chocolates quentes.
   Porém, até hoje, quando olho para os girassóis que me cercam, entristece-me saber que nunca mais haverá uma menina-Rosa, menina-flor que o mundo levou pra longe do seu jardim, levou para longe de mim.

- Jardim de Quintal, mãe de menina-flor, baseada na Prosa de Cora.

Poeta de Cafeteria Onde histórias criam vida. Descubra agora