uma mesa

103 7 3
                                    

-Poesia é para loucos ou boêmios. -Seu hálito vinha direto ao meu olfato tão próximo estavam nossos rostos. Ela olhou por um longo instante o que eu escrevia antes de falar alguma palavra. Senti meu coração acelerar nesse meio tempo.

-Faço parte do grupo dos loucos! -Tentei me defender, porque para a sociedade brasileira da década de trinta, loucura seria mais tolerada no meu caso do que boemia.

-Tem um certo ar de boêmia. - Se sentou na mesma mesa redonda que eu, bem na minha frente. Agora nossos rostos não estavam colocados e sim um frente ao outro, na distância segura de uma mesa. Estaria esse puta me cantando? Seria isso possível? Sim, era uma puta, a roupa elegante e o jeito de falar podia enganar a todos, menos a mim, até seu valor sabia. Tinha vindo a festa com Javi, meu amigo, seu nome era Márcia, provavelmente nome falso, e embora tivesse a classe de uma cortesã real, era uma puta de rua que Javi tivera a sorte de conhecer, deslumbrado com sua conversa, beleza e elegância a transformou no seu pingente para as festas. Para todos os efeitos, ela era uma atriz do estrangeiro, seu sotaque francês impecável podia convencer até quem morou na França por quatro anos, mas eu morei por cinco. Seu charme confunde a mente de todos os moços e homens do lugar, irrita e enciuma as damas, eu porém não sou homem nem uma dama, embora todos me vejam com bons olhos, veem assim porque mantenho a boca fechada frente as mentes pequenas dessa década.

-Talvez um pouco. -Sorrio desviando meus olhos. Admito minha boemia, ela não me julgará.

-Talvez um pouco se fosse homem, mas é mulher, é demasiada boêmia! - E enquanto mostrava os dentes perfeitos num largo sorriso, encheu minha taça com mais vinho. Dei um gole. Ninguém repararia, e se reparassem? Era uma festa de jovens ricos, meu par estava cortejando outra moça e a puta, oras, quem liga?

-Um brinde aos loucos e aos boêmios -Propus.

-Um brinde a uma dama que vive sua boemia sem que seja falada. - Seus olhos iam fundo nos meus. Era um flerte? Tolice minha, só porque gosto secretamente de mulheres não significa que ela também goste, além do mais, é puta, gosta mesmo de homens.

- Onde está Javi? -Pergunto para que ela saiba que conheço seu benfeitor, e que sei sua condição.

-Deve ter achado companhia melhor. O que importa é que me deixou dinheiro para que eu desfrute na companhia de quem me aprazer. -Conheço essa forma de olhar. Cogito a hipótese de Javi ter contado meu segredo, mas o coitado nunca nem desconfiou, como contaria algo que desconhece.

-E minha companhia lhe agrada? -Pergunto antes de um gole. Lanço o mesmo olhar, como vingança, como provocação.

-Uma dama que deixa seu par para escrever numa mesa afastada? Muito mais interessante que qualquer outro aqui.

-Ou outra. -Completo.

-Não mais que eu. -Ela ri de forma espantosa e sedutora.

-Não mais do que a companhia pela qual Javi lhe trocou. - Não quero que ela continue dominando a conversa.

-Conhece a moça que saiu com Javi?-Perguntou curiosa, esquecendo por alguns segundos o ar sedutor, agora era só uma mulher atrás de fofoca.

-Não, mas se ele a deixou na festa por ela, com toda certeza essa donzela deve ser mais interessante que eu.

-E continuará donzela até o final da noite? -O riso maldoso lhe cai bem como sua roupa francesa.

-Javi é um cavalheiro.

-Conheço outro lado. -E dessa vez depois da frase zombeteira veio um ar triste. -Escreva algo, algo novo para eu ler. Quero saber a sensação de ler algo inédito aos outros.

Respondi com um sorriso terno e me coloquei a escrever de imediato.

-Devo escrever sobre o que? -Perguntei me arrependendo das primeiras palavras que escrevera e as riscando.

-Sobre mulheres, o que há de melhor? -Dessa vez não contive a expressão brejeira.

-Castas? -Provoquei.

-Também. Qual a diferença?

Na verdade a diferença é só uma pequena letra, uma linha tênue de cobranças e imposições sociais. Um homem que sai com uma mulher rica não é puto, no máximo oportunista, mas se souber se portar de forma que cative a amizade dos outros homens e a simpatia das mulheres, a velha rica que será a predadora de moços. Então a pureza social é relativa, embora a moral e virginal não. Embora virgem e educada, se meus colegas conhecessem meus desejos me veriam não como puta, mas como uma devassa, embora eles com os mesmo desejos são apenas homens. E pensando em tudo isso escrevi poucas palavras no pedaço de papel que restava.

Mostrei para minha colega de mesa, vi nos seus olhos e lábios que gostara, nos despedimos e meu par me levou para casa. Quando meu olhar cruzou com o dela na última vez daquela noite desejei por alguns instantes ser Javi, e com certeza ela desejou que eu o fosse também. E ficamos assim no desejo, e na lembrança das simples palavras que escrevi em cima daquela mesa:

Puta.

Pura.

Puta pura.

Pura puta.

A puta

A pura

A puta e a pura

A puta puta

A pura pura

A puta pura

A pura puta

Antes de ParisOnde histórias criam vida. Descubra agora