II

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Você não deveria falar tais coisas sobre si mesma. Existem diversos fatores que levam um jardim a ser classificado como péssimo, tais como a intensidade com o qual é regado ou o quanto é iluminado pela luz do sol. São todos os detalhes, isto é, as partes envolvidas que compõem o resultado final.

    ✽  

Acontece que o buraco mais profundo da Terra não estava tão longe de Sweet Amoris. Um quarteirão, para ser exata.

Estou no beco entre o Mercado de Tudo e um prédio comercial, oculta pela lata de lixo que cobre a visão para a rua, isso já faz meia hora. Correr, correr e correr não ajudou a segurar o choro, muito menos disse au revoir a todo o peso que se impregnou no coração agora murcho. Mas tenho que dar certo crédito ao buraco: Alexy, Rosalya, Priya, Iris, Violette, Lysandre, Armin, Kentin e Nathaniel rondaram a área a pouco, barulhentos e gritando por meu nome, mas ninguém teve a brilhante ideia de checar o perfeito esconderijo.

Ele nem deve ter procurado por mim. Ótimo. Quero ficar sozinha.

Não consigo parar de chorar e realmente me odeio por isso. Sinto-me fraca.

E não é pelo fato de ser chamada de tábua, não. Castiel já disse, repetiu e deixou claro tantas vezes que eu mesmo acredito que ainda não vivenciei o ápice da puberdade. Isto eu aceito.

O tapa na cara foi ouvi-lo dizer que não perderia tempo comigo. Certo, legal. E todos os momentos que compartilhamos? As alegrias, dores, conquistas? Qual era o jogo? Fazer eu me apaixonar e então me beijar era só um tipo passatempo porque não havia nada melhor para fazer? Perguntas, perguntas e perguntas. E nenhuma resposta. Quanto mais penso, mais choro.

Ás vezes, desejava que ele não fosse tão complicado. Agora, isso era tudo o que eu mais queria. Assim, teria previsto que isso aconteceria um dia. Teria me preparado. Não teria caído pela fachada "garoto com cara de mal, mas que realmente pode te surpreender". Sim, teria tomado decisões melhores, e provavelmente não choraria o Nilo.

Fecho os olhos e inspiro com intensidade, tentando abafar os soluços. Quero ser silenciosa, pois não estou nem 1% pronta para deixar o buraco.

   ✽  

Quando já havia se passado uma hora, eu ainda chorava.

Quando já haviam se passado duas horas, os soluços começaram a cessar.

Quando já haviam se passado três horas, apenas encarava a parede de alvenaria a minha frente.

Quando já haviam se passado quatro horas, considerei a possibilidade de sair do buraco mais profundo da Terra.

Quando já haviam se passado cinco horas, finalmente a coragem deu as caras e então levantei.

A garganta estava tão seca que era impossível engolir saliva. Foi aí que me lembrei: deixei a mochila em Sweet Amoris. Isso significava: sem documento, sem dinheiro, sem chave de casa para entrar e ir direito para debaixo da proteção infinita e caridosa dos cobertores. Perfeito. Tateei o bolso do jeans e achei algumas moedas, o suficiente para uma garrafa d'água. Eu esperaria meus pais chegarem em casa, madrugaria, se fosse preciso. Mas não voltaria para a escola, pelo menos não hoje. Que se danasse a mochila e o fato de ser possivelmente roubada.

Por hora, a escassez da garganta era algo com o que eu podia lidar.

Saí do beco e tentei agir o mais casualmente possível ao entrar no mercado, agradecendo por já terem desistido de procurar por mim.

Pegar garrafa d'água, pagar por ela, e esperar para entrar na própria casa. Passos bem simples de se seguir. O primeiro fluiu com eficiência. O problema veio no segundo.

— Está tudo bem com você, minha querida?


Louis, o dono do Mercado de Tudo disse ao me encarar, no meio do passo dois: pagar pela garrafa.

— Sim tio, nada com o que se preocupar.   — Respondi, ao dar de ombros.

— Certeza? — Ele arqueou a sobrancelha.   — Parece que você acabou de presenciar o genocídio de todas as coisas fofas do mundo.

— Não há nada com o que se preocupar, eu estou bem — Repeti levemente irritada.

— Os olhos vermelhos e a cara inchada dizem o contrário — Louis suspirou alto. — Vamos, fiz um bolo de chocolate que não conseguirei comer sozinho nem em mil anos, e realmente queria uma xícara de chá. Vai ser bom ter companhia.

— Não vai ser necessário, não estou no clima para bolos agora.

E para minha desgraça, o estômago, que até agora estava preocupado em matar todas as borboletas que antes o habitavam, resolve anunciar que está com fome.

— Isso sempre acontece? As palavras saem da sua boca, mas não condizem com o que o seu ser sente? Vamos.

Ele caminha em direção a uma porta nos fundos do mercado.

Eu não deveria segui-lo. Meus pais sempre me alertaram quanto aos perigos que os estranhos escondem numa fachada gentil. E também sobre os que tinham, de fato, a fachada estranha. Mas o segui, com os instintos ligados no máximo. Devia tê-los usado há muito tempo, antes de me ver apaixonada feito uma trouxa. Acho que é tarde demais, Candy.

Para a minha surpresa, a sala dos fundos é bem agradável. É decorada com tons pastéis, no centro, há uma mesinha com o conjunto de chá, um sofá grande e duas poltronas nas laterais. Há também uma minicozinha, onde da geladeira ele tira o bolo de chocolate.

— Sente-se querida — Ele diz ao começar a preparar o chá.

Sento na ponta do sofá, observando minuciosamente seus movimentos. Para minha segurança, ele abre uma nova caixa de chá, onde tira o sachê e o prepara bem na minha frente. A bebida está limpa, agora quanto ao bolo...

— Como estão seus pais, querida? — Ele ri levemente.   — Lucia sempre está com uma aura tão eufórica, enquanto que Phillip tenta manter seu ar sério haha, um belo casal certamente.

Ele estende o prato de bolo e eu o pego. O observo comer sua fatia antes. A menos que ele tenha desenvolvido total resistência há algum tipo de veneno/droga que minha mente consideraria estar na composição do bolo, posso afirmar que este também passou no teste. Sendo assim, calo o estômago barulhento.

Quando terminamos, Louis diz:

— Então querida, quer contar o que aconteceu? Ás vezes, colocar tudo para fora ajuda a aliviar o peso nos ombros.

E não sei exatamente porquê, mas conto.

E conto tudo. A trajetória que se seguiu hoje; as ocorrências anteriores; o quão miserável me sinto agora; o que eu esperava que acontecesse; como foi trouxa e a falta de coragem e forças para pisar na escola novamente sabendo que terei que olhar para o par de olhos cinza tempestuoso. Senti como se nunca tivesse falado tanto na vida.

E para a minha surpresa, ele ouviu.

Cada letra, sílaba, palavra, sentença. Ouviu todas as interrogações e pontos finais como se o fato de ter interrogações e pontos finais fosse o ponto mais importante do universo.

Sete bilhões de pessoas no mundo e o dono do Mercado de Tudo era o meu mais novo confidente. Esse é o fundo do poço?

— Nossa, é realmente muito coisa para se lidar ao mesmo tempo. Não é à toa que continua com a cara inchada.   — Louis ri levemente, a feição preocupada.

— Não tem graça, tio.   — Sinto os cantos da boca falharem na tentativa de sorrir, mas mesmo assim tentarem pela boa ação do Senhor sentado ao meu lado — Mas agora eu só... Não sei mais. Antes eu só estava me preocupando com os sintomas básicos de paixonite adolescente. Agora tenho que encarar o garoto que me dispensou da maneira mais "gentil" do mundo na frente de todos que conheço.

— Diga, Candy, querida... Se você pudesse mudar uma coisa, somente uma única coisa, pode ser algo pequeninho mesmo, sem muita relevância... O que você mudaria? — Ele pergunta.

O senhor ainda sorri gentilmente e esboça o caráter caridoso que sempre tem.

Mas agora posso jurar quevi o início de uma chama de labareda em seus olhos. 

chaotic ✽ amor doceWhere stories live. Discover now