O clarão do amanhecer rasgava as últimas nuvens que restavam da noite anterior. As folhas das árvores sobrevoavam as telhas das casas em harmonia com os pássaros que batiam as asas brancas freneticamente, a neblina baixa escondia a parte de baixo das casas e suas cores vivas podiam ser vistas à quilômetros de distância, nos mais longínquos vales. As pessoas andavam despreocupadas pelas ruas enquanto as crianças corriam em busca das pétalas flamejantes que caiam no chão e viravam cinzas e os animais escondiam-se nos próprios colos, aconchegados no calor dos cantos escuros. Os comerciantes abriam suas lojas enquanto outros colocavam na decoração festiva, como balões de gás Élio, luzes festivas e feiras de artesanato. Aquela alegria toda significava apenas uma coisa: O dia de São Romero.
Incrivelmente, o Sol parecia brilhar mais nesse dia e a Flor de Rubi desabrochava, então as pétalas flamejantes caiam frequentemente.
As colheitas eram melhores nessa época do ano, independente se fosse o dia de São Romero ou não, então os comerciantes vendiam mais.
Os únicos que não comemoravam esse dia, porque consideravam triste demais para se comemorar, eram os magos. E para você que não sabe quem são os magos de Nades-Hae, eu lhe explico. Lypeios, como são chamados os seres que tem magia no sangue ou que desenvolvem tal habilidade, são muito poderosos e podem vencer qualquer inimigo em questão, eles são dividos em quatro raças, conforme seus pais: Magos Comuns, que não descendência mágica e desenvolvem a magia quando criança, Magos Erantes, os que tem descendência de Deuses, Magos Mul, os que descendência de Demônios e os Magos Híbridos, seres fracos com partes de animais em seus corpos, geralmente os híbridos são curandeiros em cidades exóticas.
Os Lypeios consideravam a morte de São Romero desnecessariamente ridícula e não entendiam o porquê dos mortais estarem comemorando a morte de um ser que foi considerado um Deus para eles.
No casarão, a única coisa a se comemorar eram os infinitos baldes de bebidas que podiam ser acabados em segundos se os magos anciões estivessem com sede.
Liz era a única que espreitava em um canto escuro, cercada de livros e xícaras de porcelana cheias de chá flutuando por aí com Era Branca enrolada no chão. Lá estava ela, sentada no penúltimo degrau da velha escadaria devorando livros e praticando sua gloriosa magia Erante.
— Você nunca vai sair daí, Lizinha? — uma figura sóbria apareceu na frente da menina. Seus olhos azuis por trás do cabelo ruivo arregalados encaravam o rosto escondido atrás dos livros.
— Bem que eu queria, Mei, — tirou os olhos depressa do livro empoeirado e sorriu levemente, sem mostrar os dentes. — mas eu queria treinar um pouco mais minha magia. Já estou tão empoeirada quanto esses livros.
Antes que Melanie pudesse responder, um estrondo muito maior de todas as risadas ali de dentro e as de fora eclodiu com as casas longínquas. Todos os magos correram para fora e o que viram foi terrível.
As casas que antes tinham cor, tinham se transformado em destroços, as árvores pegavam fogo, as pessoas eram esmagadas por pedaços de concreto de suas casas e o rio local se transformou em um enorme lago de sangue.
Jye-Há olhou por todos os lados e só conseguiu ver um único mago negro, encapuzado com um manto marrom, mas suas botas eram pontudas e suas calças eram surradas.
— O que faremos, mestre? — perguntou um dos gêmeos, Matsuo.
— Por ora, nada, mas a humanidade está sendo destruída perante nossos olhos pela comunidade mágica, se precisarem de ajuda lutaremos até o final de nossas vidas. — respondeu, dando uma tragada em seu cachimbo comprido.
Sob as ordens de Jye-Há, todos os magos traçaram a barreira, fecharam os portões e voltarem ao seus lugares, evitando tudo que estava acontecendo. Todos eles eram gravemente torturados pelos sons que os mortais faziam ao morrerem, mas não podiam fazer nada.
Liz estava inquieta, andando de um lado para o outro, batendo seus pés, com suas mãos entrelaçadas nas costas enquanto Era Branca e Melanie olhavam aquele movimento hipnotizante de vai e vem em silêncio, sentados no chão.
— Mas isso não é possível! Como o mestre pode traçar uma barreira sem mesmo ajudar os humanos? Nesse casarão, podíamos abrigar todos os que ainda estão vivos e muito mais. — as palavras eram ásperas, ardentes como o fogo que queima do dragão.
— Liz, eu entendo a sua preocupação, mas veja bem. O que os humanos fizeram por nós sem olharem torto? Se algum dos humanos sobreviverem e pedirem ajuda para nós, lutaremos por eles, a favor deles. Mas por ora, só nos resta esperar.
Demorou uma hora para que todo a cidade ficasse em silêncio, tendo como único barulho as respirações das pessoas. Assim que tudo calou, Liz correu para fora, com cautela, e ficou na espreita como sempre fazia. A situação havia piorado e também, não existia mais cidade de Nades-Hae, não se via pessoas, os enfeites exagerados estavam acabados, os animais tremiam nas ruínas dos prédios, mas pelo menos o mago encapuzado havia ido embora.
Era Branca, temos que procurar por sobreviventes. - disse Liz, preocupada.
O animal concordou com a cabeça. A menina saltou para cima dele, ajeitou-se em cima da sela feita de couro e se preparou para levantar voo. Contudo, uma voz fortemente grave e fraca interrompeu a tentativa.
— O que pretende fazer, Liz? — Jye-Há apertou a barba branca e ajeitou os óculos. — Pode ser perigoso e o mago negro ainda pode estar por aí.
— Eu sou uma Maga Erante, mestre. Sei me proteger muito bem graças ao treinamento dos deuses. Tenho que ir atrás dos sobreviventes e cuidar deles.
— Faça como achar melhor, minha filha. — fez uma reverência, curvando-se.
Liz olhou para ele com seus olhos amarelos e sorriu, retribuindo a reverência. Melanie correu em direção a ela e perguntou se podia ir junto, tendo como ponto de vista a justiça.
Quando quiser, Era Branca.
Se preparem, então!
Era Branca levantou voo e saiu da barreira de tom lilás. Passaram por várias ruelas, olhando destroço por destroço para ver se achavam algum humano ferido.
A barriga de Liz borbulhou quando viu uma criança morta sob as lanças pontiagudas feitas de ferro.
Ela olhou por todos os lados, mas sem sucesso nos céus, desceu do dragão. Um senhor vestido de roupas surradas, com cortes sob o tecido e em sua pele, com cachos brancos e uma barba amarrada em um pingente apareceu na frente deles três.
— Senhorita, por favor, tenha piedade e me ajude. — sua voz era rouca. Seu andar desmiolado era extremamente fraco e ele estava ensanguentado. — Se não puder me ajudar, pelo menos salve essa garotinha.
Os olhos de Liz arregalaram-se ao ver a silhueta da pequena criança. Seus olhos eram negros, como a escuridão, seus cabelos eram azuis como o mar. Estava vestida somente de um manto roxo que escondia seu corpo miúdo e magro.
— Vocês dois podem viver, senhor. — adiantou Melanie, colocando a mão no ombro da amiga. — Levaremos ambos para o casarão dos magos e os curandeiros cuidarão de vocês.
— Não não, minha jovem. Não tenho mais tempo de vida, leve somente a criança e lhe dê algum ensinamento sobre magia, assim ela poderá se defender. É meu último desejo.
Era Branca rugiu, fazendo com que fumaça cinza saísse de suas narinas dilatadas. A criança assustou com a baforada do dragão e se escondeu para trás da perna do velho.
— Por favor, salve a criança!
As últimas palavras do senhor foram fortes, impostas de um jeito grave. Ele caiu de joelhos no colo de Liz, que começou a chorar.
Pequenina, pegue a criança e saia daqui. Esse senhor fez o que pode para achar alguém confiável para cuidar dela. - disse Era Branca, acalmando Liz.
Ela se ergueu com as palavras reconfortantes do animal e olhou para a menina, que tremia incontrolavelmente. Liz pegou na mão dela e lhe explicou a situação e para onde iam. A menina concordou e subiu em cima do dragão, que tomou cuidado para não derrubar a nova carga.O casarão era aconchegante, quente e incrivelmente calmo. Os magos curandeiros que moravam lá cuidaram da criança e deixaram-a descansar no andar dos quartos vazios, onde disseram que se sentiria melhor. Liz, Era Branca e Melanie não saíram do quarto da menina enquanto ela não acordasse, o que foi acontecer depois de dois dias.
Assim que ela acordou, Jye-Há começou a fazer perguntar a ela e os magos acabaram descobrindo que seu nome era Lilith e tinha acabado de completar 5 anos.
— Liz será sua guia enquanto estiver aqui. Ela te mostrará onde irá comer, onde irá aprender magia, aprender a lutar e contra quem lutar. Estamos entendidos?
Lilith concordou com a cabeça e correu em direção a Liz.
— Amanhã — começou, sussurrando. — começaremos o treino mágico, então preste atenção em todos os magos que moram aqui, para você já ter uma ideia de qual magia terá de escolher.
— Eu posso ser como você, Mana?
— Oh, não não, querida. Eu tenho a magia dos Deuses, Clã Erante. Você será do Clã Comum.
Era Branca bufou, irritado.
Deixe ela ser o que quiser, Liz.
Sabe que não sou que decido isso. Tal participação no clã vem desde do nascimento, então, se ela nasceu não-lypeio não pode ser de qualquer clã.
Jye-Há bateu as unhas na mesa e soltou um rugido, fazendo Era Branca olhasse torto para ele e abaixasse a cabeça.
— Assunto encerrado, Mabskol.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Herdeira
FantasyAno X488, na cidade de Nades-Hae, Mundo mágico. Assim que a cidade é invadida por magos negros, os únicos Lypeios que sobram decidem ir para a Capital a pé, mas no meio do caminho, eles encontram um viajante um tanto atípico que decide ir junto com...