Capítulo I

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Lavava meu cão com a mangueira em frente a minha casa quando a vi pela primeira vez. Usava uma fita amarela arrematando as pontas do cabelo escuro, vestidinho azul e sapatos brancos de fivelas duplas. Parou de zigue-zaguear com o patinete, largando-o na guia, buscando encontrar um espaço limpo na calçada acomodou-se ali. Vi o esforço que fazia para secar a testa e esconder os olhos dos raios de sol. A luz diurna escorria sob sua pele de porcelana, ornando as pernas encorpadas de quem tem fartura na mesa.

Ainda que não estivesse de pé, calculei uma altura pouco abaixo da minha, o que estava de acordo com a idade que presumi. Diferentemente de mim que me tornaria um nanico se continuasse com o crescimento freado. Meu corpo era tão franzino, que mais parecia um atestado de pobreza extrema. Motivo ao qual inúmeras pessoas se equivocaram ao calcular minha idade.

Éramos dissemelhantes, figuras expressivas de dois polos desiguais. Retratos da parca linha que separa a longevidade do adoecer iminente. Me assemelhava a um cadáver que esquecera de deitar, já ela, possuía notória robustez física.

Linda! Perguntei-me se suas bochechas possuíam naturalmente aquele tom coral, ou se o calor era o responsável pelo aspecto viçoso de seu rosto infantil.

Seus olhos graúdos de um profundo marrom me surpreenderam do outro lado da rua. Recuei os meus alguns tons mais claros para a pelagem preta do Sem Nome, escovando seus pelos ásperos por alguns segundos. Estavam tão emaranhados quanto meus cabelos castanhos claros e cheios de caracóis que acabaram engruvinhados pela fronha encardida. Não encontrei uma escova de cabelo, sequer um maldito pente. Em Sem Nome usava um escovão de roupa. Certamente não era o adequado, e apostaria que por isso murmurejava tanto. Ele não deveria ser tão ingrato. Aquilo era um favor, já que fedia mais que ovo podre.

Sem me dar conta, minha atenção era novamente dela.

Abria um pacote de biscoitos recheados. A princípio teve um pouco de difículdade, tendo que usar os dentes como ferramenta. Na ânsia o pacote rasgou mais do que qualquer um poderia prever. Três ou quatro bolachas despencaram no chão, algumas se partindo. Checou ligeiramente todos os ângulos, sorrateiramente recuperou as bolachas que não se despedaçaram, convencida de que ninguém a flagraria.

Desuniu os dois lados, um permaneceu com a espessa camada de recheio rosa, o outro somente com raspas. Sua língua tão rosa quanto o corante percorreu as margens, saboreando devagar, como se estivesse com dó de abocanhar de uma só vez. Juro que poderia observar eternamente a rotação que fazia com a língua roséa e úmida, mas inusitadamente fui interrompido.

Lancei meu tronco para trás, e tentei me proteger com os braços quando uma saraivada de gotas me obrigaram a cerrar os olhos. Assim que o cachorro parou de chacoalhar a pelagem, consegui ficar ainda mais encharcado.

Soltei um palavrão com dezenas de sílabas. Minha tia Margarida me dava algumas surras por causa daquele hábito. Um dia parou de dizer que lavaria minha boca com sabão, foi quando morreu de infecção generalizada por causa de uma cirurgia má sucedida.

Vi que a dona do patinete gargalhava copiosamente de mim, tentando ocultar o riso com as mãos. Seu divertimento cessou quando o Sem Nome avançou em sua direção como um búfalo selvagem.

As pessoas sabem ser apáticas a maior parte do tempo. Muitos demostrando apreço à vida apenas quando sentem algum risco em perdê-la. Pensava que era exagero apelativo de ficções de terror, mas pessoas medrosas como ela transformavam o cotidiano em um belíssimo espetáculo cinematográfico.

E era isso que fazia, com o histerismo evidente agitava as mãos sistematicamente, estabelecendo-se como preza. Em resposta, Sem Nome exibiu os caninos, rosnando. Com as patas frontais tateou o asfalto repetidas vezes, aprumando o pescoço cheio de confiança.

Não pude evitar achar graça daquilo. O desespero dela era divertido. Algo nos olhos pulando das órbitas, ou talvez fosse a boca semiaberta que comportaria um enxame de moscas. Acho que em sua percepção o cachorro era como uma draga faminta. Talvez ele estivesse mesmo faminto, mas mais do que isso, Sem Nome era hiperativo, parecendo sempre feliz ainda que na miséria.

Mesmo após levar pontapés, logo parecia indiferente. Meu tio dizia que cachorros não passavam de anencéfalos carniceiros e miseráveis. Foi naquele dia que o Sem Nome foi posto para fora de casa a chutes. Ele choramingou um pouco, mas logo estava abanando o rabo, como se existisse algo de empolgante em ser o mais novo desabrigado da praça.

— Sai! Sai, xô! — O tom dela tinha uma projeção formidavelmente aguda.

Larguei a escova e deixei a mangueira jorrando água. Segui as pegadas molhadas do cachorro tentando desfazer-me da espuma em minhas mãos.

— Ele é inofensivo.

— Como pode ter tanta certeza? — Procurava alguma verdade em minhas palavras.

Estava mais do que claro. Bastava analisar a figura deplorável daquela criatura que andava só a carcaça. Talvez lhe faltasse força na mandíbula em detrimento dos dentes podres.

— Se parar quieta, ele também vai ficar. — Instrui. Observamos Sem Nome inclinar o focinho e consequentemente devorar as migalhas ao chão. — Tá vendo? São eles que precisam nos temer.

— Por quê?

— Por que somos humanos.

Poliana Quer Biscoito #ProjetoNirvanaOnde histórias criam vida. Descubra agora