Sobre amores e lágrimas

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ㅤJúlia atravessou a poça d'água que dividia o seu caminho. Com o guarda-chuva amarelo pendendo sobre os ombros, ouviu alguém dizer o seu nome:

ㅤ"Jul", apenas Jul.

ㅤEla ergueu a cabeça e viu, no meio da multidão que corria da chuva, aquele par de olhos castanhos que um dia amara tão intensamente, a ponto de acreditar que a ferida deixada por aquele amor ― o vestígio silencioso da sua ausência ― jamais se fecharia. Júlia o avistou pela primeira vez quando voltava da faculdade, em um dia tão chuvoso como o que enfrentava agora. 

ㅤJá fazia dois anos, mas ainda se recordava dos sapatos molhados, do frio que chegava aos ossos, das lágrimas que escorriam disfarçadas pelos respingos da chuva. Ela só desejava ir embora. Queria ir para casa, mas não a casa que dividia com os outros estudantes. A sua casa. Sentia saudades dos pais, do bolo de milho assando no forno, dos beijos trocados com Pedro na varanda, do cinema improvisado aos domingos. 

ㅤAinda se lembrava do cansaço e do vazio que sentia. Ela chorava com ou sem razão, chorava pelas escolhas erradas e pelas certas. Chorava por não conseguir viver ou por querer viver demais. Foi assim, entre lágrimas, que Júlia conheceu o dono daquele par de olhos castanhos em uma cafeteria que costumava frequentar depois das aulas. 

ㅤChamava-se Lucas. 

ㅤTalvez fosse o destino, que lhe trouxera a pessoa certa no momento certo, mas hoje aquilo lhe parecia bobagem. 

ㅤEla acabou pedindo um café expresso. Os seis longos meses fora de casa a ensinaram que café curava o cansaço físico e, temporariamente, a solidão. Júlia gostava de se sentar em um das mesinhas da cafeteria e observar as pessoas ao redor, enquanto sentia sua garganta se aquecer e o seu hálito ficar mais forte. Ninguém a notava. De modo que, quando alguém sorriu ― um sorriso pequeno e tímido ―, Júlia se surpreendeu e sorriu de volta.

ㅤFoi um sorriso rápido, como se ele não quisesse que o visse. Porém, ela gravou aquela imagem. Às vezes, ainda se pergunta se aquele sorriso foi para ela. Ou se houve algum sorriso. Mas naquela época lhe pareceu apropriado acreditar que sim. Voltaram a se reencontrar em uma festa da universidade e, depois de trocarem alguns olhares e sorrisos distantes, trocaram telefones. 

ㅤNão ocorreu exatamente como nos filmes. Não houve comentários levemente bem-humorados, porém apaixonados, e nem situações embaraçosas ou envolventes, muito menos houve amor à primeira vista. Eles apenas trocaram telefones. Com o tempo, aquele vazio que sentia foi ocupado por Lucas. Não sentia mais falta dos beijos de Pedro. Agora tinha os beijos com gosto de café do Lucas.

ㅤJúlia gostava de sentir o calor dos pés dele sobre os seus pés frios. Gostava da maneira como ele a chamava de Jul, apenas Jul. Gostava do aroma que vinha das suas roupas; uma mistura de café, cigarro e loção pós-barba. E algumas notas que lembravam sândalo. Gostava de passar as noites de sábado ao seu lado, bebendo garrafas de vinho pelo gargalho, ouvindo vinis antigos do Frank Sinatra e dançando bêbados e descalços pela sala do apartamento de Lucas. Júlia se lembrava dos risos e dos tropeços, dos beijos e dos pés doloridos. 

ㅤAté que tudo acabou. 

ㅤAquele amor tão intenso que sentiam um pelo outro se tornou frio e distante. Foi de repente, "não mais que de repente", como naquele poema do Vinícius de Morais que uma vez lera na escola. De uma hora para a outra, a tempestade e as lágrimas voltaram.

ㅤJúlia encarou aquele par de olhos castanhos. Pensou em perguntar a ele se aquele sorriso tímido na cafeteria realmente existira. Queria perguntar quando tudo deixara de ser intenso e se tornara amargo, quando cada detalhe que antes eles amavam um no outro, se tornara irritante. Ou onde foi que ela ou eles erraram.

ㅤMas nada disso importava mais. Agora os beijos com gosto de café do Lucas foram substituídos pelos beijos com gosto de hortelã de Felipe. Os olhos castanhos pelos acinzentados. Júlia esboçou um sorriso para Lucas, abaixou a cabeça e prosseguiu, com o guarda-chuva sobre os ombros. Não importava mais.

ㅤA vida sempre seguia.

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