A despedida

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  Eu lamentava por ser a última vez que a via, e ao mesmo tempo admirava o quão perfeita estava. Tenho certeza de que ela gostaria de ver tanta gente ao seu redor, relembrando-a, e observando o quanto era linda.
  Não sei quem a vestiu, mas eu nunca a vi tão bela, estava com um esplendoroso vestido negro rendado e uma maquiagem escura. Seu batom vermelho conquistava olhares, os cabelos escuros se movimentavam suavemente quando o vento os tocava, e sua pele clara brilhava em meio a todo o preto. A beleza da garota era invejável, algumas das meninas que passavam por perto paralisavam por alguns segundos, pois nenhuma chegava aos seus pés, sim... ela adoraria ver isto, tantos olhos parados, virados para si.
  Um estranho homem parecia pensar o mesmo, assim como ela, o local estava perfeito. Me pergunto quem a conhecia tão bem a ponto de fazer algo que combinasse tanto. O homem vestia um terno elegante, creio que este fosse mais caro que meu carro (apesar de que isto não era difícil), ele foi se aproximando e resolveu se apresentar:
- Prazer garoto, pode me chamar de senhor Hoffman - rapidamente reconheci o sobrenome, eu conhecia a maior parte da família Hoffman, mas nunca o vi.
- Sou John.
- Não acha um desperdício? Tanto empenho em um enterro.
- Acharia... se não soubesse a quem é dedicado, mas sei, Ália merecia muito mais, ela é inesquecível - vi em seus lábios o esboço de um sorriso debochado.

- São muitos os adjetivos para descreve-la, mas você utilizou um interessante. Ela era intensa, apaixonante, diferente de qualquer uma, mas ainda assim é estranho chamar uma vadia de inesquecível -  embora fosse verdade ouvir aquilo me doeu (e aquele homem não poupou palavras e nem mudou seu discurso sabendo que estava no enterro de Ália Hoffman), ainda assim eu era apaixonado por ela, e relembrar que meu coração era dela e isto não fez a mínima diferença me machucava. Dirigi um último olhar a Hoffman (o senhor Hoffman), e sai de perto.  Eu não sei explicar o que senti ao vê-lo, eu não o conhecia, porém,  quando ele falou comigo... soube que havia algo de errado, seus olhos entregavam seus segredos. Talvez eu só esteja paranóico, este enterro está mexendo com minha mente.
  Talvez ele estivesse certo, era muito luxo para uma garota dessas, rosas negras e vermelhas por todo lugar, luzes suaves detalhadamente colocadas sobre seu caixão, bancos escuros de Madeira, inteiramente talhados com desenhos de flores e anjos. Tudo estava perfeito, mas eu reparei no quadro posicionado próximo ao caixão, uma linda foto de Ália, aqueles olhos penetrantes, e aquele sorriso suave, quando olhei o retrato senti como se ela ganhasse vida novamente, aquela foto tinha uma energia...
Eu não vi pessoas chorando, apenas a observavam, alguns olhares diziam  " foi tarde" e alguns, na verdade a menor parte deles, pareciam realmente abatidos, tudo de forma muito nítida, mas ninguém chora, sou o único idiota derrubando lágrimas quando penso nesta... garota? Tem muitas pessoas neste funeral, ela deixava sua marca onde passava... os traços da destruição, o sangue, a tristeza, nada de bom, embora seja tão trágico admitir.
  Lembro do dia em que a vi pela primeira vez, eu era só o filho da empregada, cheio de malas para me mudar para a mansão dos Hoffmans, encantado com aquele lugar, quando vi a perfeição descendo as escadas, com seu vestido inteiro colado e longo, vermelho, como esquecer? Na verdade tinha algo de especial nela que fazia as pessoas ficarem obcecadas: o jogo de Ália, ela conquistava todos, mas também brincava com todos, não amava ninguém, e deixava isso bem claro, nenhuma companhia lhe fazia diferença, ela conseguia substituir qualquer um, sem sofrer, sem se importar com a ausência das pessoas que perdia. E mesmo que os idiotas fiéis à ela (eu, inclusive) soubessem disso, eles não conseguiam deixá-la, bom, a maioria deles. Porém, eles não sabiam seus segredos, se soubessem...teriam ido há muito tempo, ao contrário de mim, que descobri, e ainda assim a protegi.
  Àlia tinha uma intensidade, me lembrava as montanhas, encantadoras, hipnotizantes, mas se não tomar cuidado pode despencar. Todos conheciam seu lado profundo, mas sim, eu era o único que conhecia uma parte de seu lado sombrio...
  Minha mãe e eu dormiamos no mesmo quarto na mansão, nós morávamos naquela casa pois seria mais fácil para servi-los e porque não tínhamos dinheiro para o aluguel. Digamos que dividir uma casa com seus patrões não é bom, mas vê-la passar por mim, sentir seu perfume de baunilha, seu olhar, seu jeito, ah, fazia tudo valer a pena.
  Na época em que cheguei à casa havia uma investigação sobre desaparecimentos ocorrendo na região, e alguns assassinatos, embora poucos corpos tivessem sido encontrados, as pessoas simplesmente sumiam, sem deixar qualquer rastro, qualquer pista. Por algum motivo sempre senti que os Hoffmans tinham algo a ver com isso, parecia loucura pensar que milionários teriam tempo ou interesse em algo do tipo, mas eu estava certo, infelizmente eu estava certo.
  Tudo era normal até aquela fatídica tarde... encontrei Ália chorando em frente à piscina, parecia desolada, ainda assim possuía seu charme. Eu a observei por alguns segundos, a forma como as lágrimas rolavam em seu rosto e de forma sutil eram afastadas pelo vento, assim como seu cabelo, os fios levitavam de forma tão suave, não demorou muito para que ela, espantada e envergonhada, notasse minha presença e rapidamente limpasse seu rosto com a manga de seu suéter. Normalmente ela não demonstrava seu lado frágil, me aproximei e sentei ao seu lado, eu a abracei, e assim ficamos por um bom tempo, até que ela, como se recordasse o quão fria costumava se obrigar a ser, se levantou, sem me dirigir um último olhar, ou uma última palavra, e entrou na casa.  Durante 3 dias Ália me evitou, na época imaginei que ela estava realmente constrangida, ou só tivesse percebido que minha companhia não importava, ou não era suficientemente interessante. E nesses dias eu me martilizei, me torturei tentando descobrir o que fiz de tão errado, até entrar em me quarto e avistar uma carta sobre minha cama - a qual estava tão perfumada quanto ela, reconheci rapidamente a letra eu a li, um tanto desesperado, ansioso:
" Meu pai e eu éramos muito próximos, e quando pequena sempre tive problemas... eu, embora não goste, tenho que admitir que sou descontrolada e desequilibrada, coisa que não comento com ninguém, mas ele sempre me fazia sorrir e ficar bem. Toda vez que eu me irritava com algo não era capaz de me conter, atacava à todos, gritava, jogava coisas no chão, mas não com ele, meu pai me ajudava, me trazia uma certa paz. Com o passar dos anos aprendi a fingir que estava bem, sem alterar a voz, ou quebrar algo. Toda vez que sentia que desabaria me lembrava daquele lugar, estive lá uma única vez, somente com meu pai, mas as lembranças daquela tarde parecem tão frescas. Estava anoitecendo, e o sol dava espaço à escuridão, ainda assim era possível ver sua dança de cores no céu, nos sentamos em uma pedra em frente ao mar, o vento...ah, como eu o amo, ele tocava nossa pele, quase como se pudesse acariciá-la, leves arrepios percorriam-na, a praia era iluminada pelos suaves traços de luz deixados no céu. Meu pai me abraçou, olhamos para o sol se pondo, e foi quando ele me disse " meu amor por você é como o sol, não importa o que aconteça, está sempre brilhando no céu, e quando achamos que se foi, inicia-se um novo dia", suas palavras ainda ecoam em minha mente e tudo que desejo é ouvi-las novamente, como naquela tarde, a melhor tarde, com a melhor pessoa, eu daria tudo para revive-la

Ele se foi... quando eu tinha 8 anos, bebeu demais e se acidentou, ao menos é o que dizem, durante esses anos relembrei aquela tarde, isto me dá um certo alívio, muitas vezes tento até mesmo recriar aquele lugar, me imaginar novamente lá. Eu escondi este passado, escondi meus problemas psicológicos e raramente comento algo sobre meu pai, você é a primeira pessoa em quem confio à ponto de contar tudo isto, então, é melhor não estragar tudo.
- A.H "
  Ela faz falta, suas cartas, seu jeito, toda vez que me lembro que não vou vê-la novamente sinto um aperto no peito, uma agonia, quando fecho os olhos e vejo a imagem de Ália, sei que nunca a esquecerei ou encontrarei alguém que amenize esse vazio, essa dor.

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