Capítulo 1

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"Você tem uma nova mensagem na sua caixa de entrada"

A notificação invadiu o canto da minha tela, mas como eu estava empenhado em finalizar o meu artigo, ignorei aquele ícone irritante com uma carta piscando. Afinal, deveria ser só mais uma propaganda prometendo milagres em apenas três dias, e eu tinha um prazo a cumprir.

Eu escrevia sobre o terrível acidente em uma das corridas de stock car, que poderia dar fim à uma das mais promissoras carreiras do automobilismo, quando a voz de um dos meus colegas interrompeu a minha concentração.

— Caraca! Recebi uma mensagem do RH! Droga! Eles vão me cortar!

O rosto do Danilo estava pálido, e como éramos vizinhos de baia na redação, foi impossível ignorar o desespero do homem ao meu lado.

— Está escrito isso aí, Dan? — perguntei com interesse real, pois há meses ouvíamos boatos de um corte de pessoal vindo.

— Não exatamente, mas ser intimado assim, cara, não pode ser coisa boa... E você, Nic? Recebeu um e-mail também?

Rapidamente cliquei no ícone até então ignorado, pois eu tinha motivos para me preocupar com esse assunto, já que os novatos são os primeiros a irem para a rua — mesmo que isso não se encaixasse perfeitamente no meu caso, visto que trabalhei nesse mesmo jornal por muito tempo antes de sair para, hum, resolver problemas pessoais.

Assim que visualizei o recente e-mail que havia chegado, um misto de surpresa e pavor tomou conta de mim, pois de todas as possibilidades possíveis, eu jamais poderia prever que aquela simples mensagem chegaria justamente agora.

Vixi, pela sua cara já vi que foi intimado também!

— Não, não é do RH. — respondi de maneira automática, digerindo a informação que eu havia recebido.

— Então, por que essa cara, Nic? O que pode ser pior do que o olho da rua?

— Parentes, Dan. Parentes e visitas inesperadas.

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Passei o resto do expediente inquieto, pensando em como sair de uma situação que certamente seria catastrófica. E tudo, porque eu havia recebido, em poucas linhas, os dados de um voo internacional que chegaria ao início dessa noite. Três passageiros que faziam anualmente essa mesma viagem, para um mesmo ritual.

E eu negligentemente me esqueci disso. Eu me esqueci dela.

Parte de mim se ressentia desse fato, da maneira como eu fui capaz de seguir em frente e apenas esquecer, como se tudo o que eu vivi, o que nós vivemos não tivesse mais importância. Mas, outra parte de mim, se sentia aliviada exatamente pelo mesmo motivo, pois eu já não me submetia à minha dor, odiando o mundo pela perda que sofri. E embora eu soubesse que nessa batalha interna não haveria um lado vencedor, era impossível impedir esse conflito de emoções, que me fazia querer voltar aos velhos hábitos de gritar e socar as coisas pela frente, extravasando essa culpa que me comia vivo.

E a cada virar do ponteiro no relógio meu tempo parecia se esgotar. Eu era um homem com uma bomba prestes a explodir, pois eu ainda não tinha a menor ideia do que fazer com os meus inusitados visitantes. Se eu não pensasse rápido, essa bomba iria detonar, fazendo com que o meu passado, meu presente e meu futuro colidissem numa cena nada bonita, na verdade, eu podia ver estilhaços e uma imensa bola de fogo flamejante.

— Ei, cara! — senti um cutucão no ombro acompanhando a voz do Dan. — Seu telefone está tocando há tipo, uma meia hora. — ele apontou para o aparelho na minha mesa, onde uma foto da Lilian com o Cometa piscava na tela.

— Eu estava distraído mano, obrigado. — agradeci ao meu colega e rapidamente apertei o botão verde.

— Meus Céus, Nic! Não me deixa aflita, por que raios você demorou tanto para atender?! Vocês estão bem, não estão? — o tom desesperado vindo da outro lado da ligação colocaria qualquer um em estado de alerta, mas eu já tinha experiência com os surtos da Lili.

— Ah querida, meu Amoreco do coração, eu sabia que você me amava, mas essa preocupação toda é exagero. Eu e o Pequeno Nic estamos bem. — eu usei meu tom despreocupado que a enlouquecia e como prova, eu ouvi um bufo do outro lado.

— Eu quero é saber do meu carro! Você e o seu amiguinho podem fazer piadinhas assim lá na Cochinchina!

— Tem certeza Lili? Não vai sentir a nossa falta? Naquelas noites frias e solitárias? — eu a provoquei um pouco mais, apenas porque era divertido imaginá-la tentando controlar o seu temperamento.

— Você gosta de brincar com o perigo, não é Nicolas? — ela usou um tom de desinteresse completamente falso, que me fez abrir um largo sorriso.

— Só quando ele está usando aquela pantufa de dinossauro. — fiz uma pausa dramática. — E somente essa pantufa... Se é que você me entende.

Ouvi um, nada discreto, limpar de garganta vindo da mesa ao lado e eu me toquei que meu tom de voz não estava sendo muito discreto.

— Mas sem estresse, Lili, a sua lata de sardinha já está na oficina, eu levei na hora do almoço e daqui a pouco vou buscar.

— Excelente! Ah, e antes de sair da oficina, confere o ronco do motor? O Cerejinha tem que estar parecendo um avião.

— Ronco? Você quer dizer engasgos, né Lili? — perguntei involuntariamente, sem me dar conta de que a minha última fala me renderia uma estadia no sofá. Fiquei um instante em pânico, sem saber como reagir.

— Olha só Niquizinho, eu até te daria uma resposta à altura da ofensa, mas o meu cliente acabou de chegar, então eu vou só dizer uma coisa. Nenhum. Arranhão. No. Meu. Bebê!

Antes que eu pudesse tomar uma respiração, a minha namorada psicótica pelo Fusca velho dela, desligou na minha cara. Mas, ao invés de ficar enraivecido por isso, eu fiquei é aliviado, pois, somente quem convive com a Lilian sabe como ela é apaixonada por aquela lata de sardinha que ela chama de carro.

E eu havia sido incumbido de levar 'o precioso' da advogada até a oficina mecânica de um amigo dela, que ficava a poucas quadras da redação do jornal, pois acreditem ou não, o Cerejinha participaria de uma importante exposição de carros clássicos.

Com toda a certeza do mundo, minha namorada era uma pessoa ímpar, com seus gostos estranhos e manias peculiares. Mas, independentemente de tudo, ela era sempre capaz de me fazer rir com todas essas maluquices que a faziam ser a advogada Lilian Medeiros.

— Hum, era a sua namorada Nic? — o Danilo perguntou com um leve rosado nas bochechas e eu respondi com um aceno de cabeça. — Errr eu escutei direito, não que eu estivesse fazendo isso de propósito, mas pantufa de dinossauro?

— Isso mesmo, cara. É uma piadinha interna. — respondi mais uma vez rindo. — Entre eu, a Lilian e a mãe dela.

Meu colega de trabalho se afastou da minha mesa com um olhar estranho no rosto, e se focando novamente na tela do seu computador.

— Vocês sabem que são um casal meio estranho, não? — ele perguntou num sussurro.

— E você não faz ideia, Dan. Ela até mesmo atirou em mim, uma vez.

Minha frase arrancou mais um olhar de espanto do homem.

Sim, eu e a Lili não éramos convencionais. Mas éramos perfeitos.

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Por enquanto é isso gente.... Ainda não tenho dias definidos  para postagens.

Estou um tanto atarefada, mas queria matar um pouquinho das saudades desse casal meio maluquinho ;)

Retrato Feito #3 (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora