- vamos meu amor, não é possível que ainda tem coisas para arrumar - chamou Márcio impaciente depois de horas esperando Gerusa arrumar suas malas.
Toda a vez que iam sair de casa era a mesma novela, não importava se o passeio duraria só um fim de semana como o que estavam prestes a fazer, ou se durava um mês inteiro. A cerimônia de arrumação de malas começava uma semana antes e só terminava no momento em que ele dava partida no carro.
No dia da viagem geralmente Márcio tentava relaxar o máximo possível, sabia que não adiantaria apressar a mulher. Pegava o Smartphone (um dos poucos momentos que mexia nele com ela em casa sem levar uma bronca para interagir mais pessoalmente). Se cansava do dispositivo; partia para o videogame, podia jogar um campeonato inteiro de futebol e ainda teria que esperar. Geralmente passava a última hora da espera entre a poltrona, a porta do quarto (chamando a mulher) e a porta de saída, pressionando infrutiferamente.
Mas sempre foi paciente, afinal, estavam indo relaxar, não valia a pena começar com o pé esquerdo. Se havia um bom momento de utilizar sua estratégia de evitar conflito, sem dúvida era esse.
- vamos, marcamos que sairíamos logo após meio dia, já é quase duas horas - tentou mais uma vez, com a voz mais doce possível.
- Pronto, me ajude a carregar - Surgiu Gerusa na sala carregando uma necessarie com uma mão e puxando uma mala de rodinhas com outra. - E não reclame, sabe que sou prevenida, nunca sei o que posso de fato precisar usar ou não.
- Tudo bem amor, mas você lembra que estamos indo pro campo, para a casa do lago de seus pais, não tem muita coisa que se possa usar lá. Alias, espero passar a maior parte do tempo sem usar nada.
- Pode ficar tranquilo seu maníaco sexual. Tudo o que precisamos está aqui.
- E também o que não precisamos - Debochou em voz pouco audível.
***
A viagem não era tão longa, uns 300 km, se não pegassem muito movimento poderiam chegar tranquilamente em três horas - tratando-se de uma terça-feira, seria tranquilo. A estrada era boa, bem sinalizada, apesar dos quilômetros finais - cerca de vinte, em uma estrada de cascalho solto, cheia de curvas.
Partiram em direção ao interior, a viagem no carro era sempre divertida, ali discutiam assuntos que geralmente não faziam parte do dia-a-dia do casal. Filosofavam, cantavam, discutiam política; falavam mal de parentes, de pessoas indesejáveis. Era ali, presos em um compartimento entre rodas que relembravam porque faziam um excelente casal. Era matemática perfeita.
- Para no próximo posto por favor, não aguento mais, preciso ir no banheiro - Falou ela após duas horas de viagem.
- tranquilo. Parece criança, tem que ficar sempre avisando pra ir fazer xixi antes de entrar no carro - Retrucou carinhosamente - Mas sabe que não há postos descentes nessa altura da estrada, depois não vai reclamar.
- Eu me viro - Respondeu Gerusa.
Após quinze minutos rodando param no primeiro posto a vista, e pelo que Márcio lembrava era o último antes do destino.
- Credo, não ser descente eu aceito, mas isso? - indagou desgostosamente.
- Eu avisei, boa sorte.
Saíram do carro, Márcio foi se alongar um pouco e Gerusa foi procurar o banheiro.
Ela avistou uma flecha pintada na lateral do prédio, mostrando que os sanitários ficavam nos fundos, foi diretamente, pra não perder tempo e sair logo dali.
- Vou comprar uma água - Gritou para ela, que já esta a uma certa distância.
- aproveita e compra um chocolate - respondeu virando o rosto e dando uma piscadela.
Dirigiu-se a loja de conveniência, se é que poderia ser chamada assim. Era um ambiente um tanto sujo e nada acolhedor. Dirigiu-se ao refrigerador, pegou uma garrafa de água - acho que posso confiar, já que é lacrada - pensou.
Levantou a cabeça e localizou os doces, foi até a gôndola, e apesar de os chocolates também virem em embalagens lacradas, não teve a mesma confiança que teve com a água. Deixou pra lá - Seja qual fosse o desejo por doce, este poderia esperar por algo mais confiável.
O balconista era tão sinistro quanto o resto do ambiente. vidrado numa pequena TV na lateral do ambiente, sequer percebeu a presença de Márcio, ou melhor, fingiu não perceber.
- Boa tarde, quanto a água? - perguntou.
- quatrreal - incrível como essas pessoas conseguiam economizar energia até ao falar palavras, afinal, sem dúvida seria fadigoso demais pronunciar duas palavras dessa complexidade.
Procurou na carteira, entregou duas notas de dois reais e virou-se em direção à porta quando ouviu um grito que lhe gelou a espinha.
- aaaaahhhhhhh.
Era Gerusa. Saiu correndo apavorado, contornando o prédio a viu afastando um sujeito de perto.
- sai seu tarado. Márcio, esse homem tava me espionando pela basculante do banheiro.
- O que você acha que ta fazendo cara - gritou com o homem enquanto esse se encolhia, como se estivesse envergonhado do que tinha feito, como uma criança fica depois de levar uma bronca por ter aprontado algo.
- Deixa ele paz - falou o balconista, que já vinha atrás de Márcio - Não vê que o pobre coitado é retardado, tão inocente e inofensivo quanto um bebê.
- Vamos embora de uma vez Márcio - falou Gerusa já indo em direção ao carro totalmente desconfortável com a situação.
Deram as costas para os anfitriões, arrancaram com o carro e seguiram viagem.
- agora to precisando muito desse chocolate - Disse ela.
- sinto muito, vai ter que esperar até chegarmos, preferi não arriscar um desarranjo intestinal na nossa bela viagem.
Ela cruzou os braços emburrada, mas com o ar que dava razão ao marido.
***
A viagem prosseguiu mais silenciosa, sem dúvida a parada para aliviar a bexiga só serviu pra tensionar a pressão entre os dois.
- Meu bem, não vamos deixar que um pequeno fato como esse estrague nossa viagem romântica de dia dos namorados.
- Tem razão, mas sabe como não consigo disfarçar quando estou desconfortável - Respondeu ela.
- Eu seu meu amor, me da um beijinho aqui que tudo se resolve.
- Seu patife - Ela riu a o beijou.
Sem dúvida o clima se amenizou. Uma simples brincadeira e estavam de volta ao clima inicial da viagem.
Passaram pela placa "Lagoa Santa Tereza à 30 KM". Saíram da rodovia, pegaram a estrada de cascalho e ficaram felizes por finalmente estarem chegando ao destino.
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Um dia qualquer
Short StoryA vida passa em um piscar de olhos, temos que aproveitar cada segundo ao lado das pessoas que amamos. Aproveitando ou não, quando vemos simplesmente já era.