Capítulo I: Escassez e Necessidade

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Os tempos mudaram: ao invés de monstros e titãs, devo derrotar a fome dos oprimidos. Confesso que me sinto entediado. O frio que assola esses pobres coitados não é comum; já são seis meses sem colheita. No início as temperaturas estavam apenas abaixo do normal, agora há neve e escassez. Estou sentindo que a cada dia o frio está mais intenso. Tudo isso pode ser, de acordo com minha experiência, maldição de uma bruxa antiga, a presença de um demônio glacial, o capricho de um deus ou, como sempre, algo totalmente inesperado. Chegando a mais uma carente vila, sou recebido como um filho de Zeus, um Titã com poder para destruir os males da Grécia com os estalar dos dedos. Mas sou apenas um mortal com uma carroça cheia de alimentos para saciar a fome deles.

- Éxallos, poderoso guerreiro de Tebas! Essa comida nos manterá a salvo da morte por um bom tempo e seremos gratos pela eternidade! - Disse o velho senhor do vilarejo faminto.

- Não preciso de gratidão, ancião, pois esse é meu dever. - Respondo, já retirando os fardos de alimento da carroça. Sim, dever é a palavra que eu uso. Nenhum imperador ou deus me impôs a obrigação de proteger os mortais, pelo menos não com palavras, faladas ou escritas; eu apenas nasci com a coragem e a força de vontade necessárias para encarar o sobrenatural, portanto, é meu dever faze-lo.

- Ancião, acalme e conforte seu povoado. Antes do fim deste alimento deixado aqui, suas próprias colheitas estarão lhe saciando a fome, pois visitarei o templo da Deusa Deméter. - Disse ao terminar de descarregar o último fardo.

Antes que o velho ou qualquer outro se pusesse a vociferar bênçãos desnecessárias coloquei-me no caminho da estrada e parti. Com o frio, minha viagem se tornaria um pouco mais demorada que o normal. Grígora é um cavalo forte e resistente, o companheiro ideal para esta ocasião, mas mesmo assim não faria o percurso em menos de um dia.

Já visitei templos de vários deuses durante minha vida, porém nunca para rezar. Se os deuses quisessem o bem dos mortais, seriamos deuses. Já me encontrei com alguns deles, Atena já elogiou minha sabedoria, Artemis e Ares se disseram surpresos pelas minhas habilidades e, apesar de toda esta cortesia eu senti apenas uma coisa vindo deles: desprezo. Deméter é deusa dos agricultores, "bondosa" deusa mãe. Irmã de Zeus ela cuida das colheitas e dos bons frutos. Pelo menos deveria estar cuidando. Mal posso esperar para ouvir o que ela tem a me dizer.

Após meu dia de viagem e uma noite mal dormida, chego ao afastado templo da deusa da colheita. De longe, pude percebê-lo coberto de neve e com aspecto de abandono. Pensei instantaneamente que nenhum mortal habitaria um lugar daquele, muito menos um deus; mas pensando um pouco melhor, nenhum deus moraria em um templo, nem o templo mais formidável da Grécia seria digno da morada dos maravilhosos deuses. Seria como um humano morando com os porcos, num chiqueiro; ainda que feito de ouro, prata e marfim não deixaria de ser um chiqueiro. Chiqueiros são para os porcos, como os templos são para os homens. Enfim às portas do templo, deixo Grígora na entrada e passo pela porta carregando apenas minha oferenda de peças valiosas e obras de arte. Avisto a majestosa estátua da deusa Deméter, ajoelho e digo:

- Poderosa deusa mãe, senhora das colheitas e dos agricultores, aceite esta humilde oferendo em nome de seus súditos e nos abençoe com fartas colheitas como tem feito através das eras. - Termino minha prece de olhos fechados torcendo para que os Deuses não tenham o poder de ver o sarcasmo em nossa alma.

Segundos depois uma voz imponente e masculina irrompe o ar:

- Poderoso guerreiro de Tebas, Éxallos! Sinto te dizer que sua prece não será atendida hoje e que Deméter não irá interceder por ti; em seu lugar, eu, Hermes, estou aqui para te ouvir.

E assim eu aumentei a lista de deuses que me dirigiram a palavra.


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⏰ Last updated: Mar 10, 2017 ⏰

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