Que bom seria

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— Que bom seria ser homem, não é?

Foi o que me disse, certa vez, essa senhora que conheço e muito admiro. O que me pegou mesmo de surpresa, além do questionamento, foi a maneira como ela o fez: tão banal, tão natural, que era quase como se estivesse apenas comentando o tempo. Fiquei pasma e, a princípio, não soube como responder. Foi uma daquelas situações embaraçosas, em que fui pega com as calças – ou saias? – curtas e justíssimas.

A única saída foi perguntar de volta:

— Por que a senhora diz isso?

— Oras – ela disse, como se o pensamento fosse mais que natural. — Homens podem tudo! – E como antes estávamos conversando sobre viagens, completou: — Podem viajar quando quiserem, até sozinhos, sem dar satisfações a ninguém! Imagine!

O pensamento me causou uma inquietação pesada no peito. Entretanto, feminista que sou, logo desvirtuei o assunto com argumentos bastante lógicos; esta senhora, já beirando os 90, viveu outros tempos, outra criação. É claro, ela só podia estar dizendo algo tão horrível porque é de outra época. Sem saber que estava tentando convencer a mim mesma, comentei como o mundo mudou e que as mulheres podem e devem fazer o que quiserem, que elas – nós – conquistaram essa liberdade ao longo dos anos.

Ela mudou de assunto drasticamente. De início, pensei que tivesse apenas esquecido o que estávamos conversando, afinal, já passou por dois derrames e anda um tanto desmemoriada. Eu, muito esperta, caí, inocente, em seu estratagema.

Desmemoriada uma ova! Foi é muito sagaz, essa minha amiga.

Deixei sua casa algum tempo depois, preocupada com meus afazeres e já esquecida – que ironia! – do assunto. Mas a verdade bate com força e sua velocidade é assustadora: no caminho de volta, recebi na rua uma cantada humilhante de um homem desconhecido.

— Gostosa! Uhhh, lá em casa!

Sempre fico assustada nessas ocasiões; é, afinal, como fui educada por minha mãe a me sentir, e quantas meninas não são ensinadas exatamente dessa maneira até hoje? Apressei o passo, cruzando os braços ao redor dos seios, sem notar meu gesto, e apenas observei-o de rabo de olho. Era um homem bem mais velho que eu, que poderia inclusive ser meu pai; olhava-me de forma lasciva, como se pudesse me comer com os olhos. Lambuzava-se, como já me sentisse o sabor.

Fui invadida por um sentimento que misturava rancor, medo e frustração. O que poderia fazer? Voltar lá e dizer umas boas verdades ao sem-vergonha? Claro que não. Quando uma mulher pode fazer uma coisa dessas? Fomos ensinadas, desde meninas, a simplesmente abaixar a cabeça e seguir em frente; vai passar, apenas ignore, não arrume encrenca com os homens, eles são mais fortes, eles podem te machucar.

Eles podem te machucar.

Eles apenas podem.

E você, mulher, o que pode fazer?

Que bom seria ser homem, não é?

Cheguei em casa como se tivesse retornado de uma batalha. Encostei-me à parede, humilhada, respiração ruidosa, coração aos pulos, e me dei conta de que realmente era uma guerra. Mulheres deixam a segurança de seus lares – que às vezes, nem são tão seguros assim – e saem para a contenda, peito aberto – encobertos –, apenas para serem feridas, cada dia um pouco mais, e retornarem, aliviadas por terem sobrevivido a mais um dia, a mais um tanto de homens conhecidos e desconhecidos, dos quais não sabe o que esperar ou, talvez, dos quais espera sempre o pior.

Retornam vivas, mas nunca ilesas. É como aquela história da madeira; você prega, todos os dias, e pode até tentar remover os pregos mais tarde, porém a madeira nunca mais será a mesma.

Que bom seria ser homem.

As palavras da minha sábia amiga retornaram com toda a força. Foi então que percebi o quanto fui ingênua, o quanto estava tentando me enganar. Ela estava certa.

Ela estava coberta de razão.

Desde criança, sempre me considerei um pouco diferente das outras meninas. Não queria usar saias ou vestidos; eles me despertavam um estranho sentimento, que não conseguia definir, mas que me deixavam muito mal. Só mais tarde percebi que me faziam sentir vulnerável. As calças, as bermudas, as camisetas largas, elas sim me faziam bem; com essas roupas podia brincar como bem entendesse, sem me preocupar se um menino espiaria minha calcinha, se um garoto checaria meus peitos.

Porque se isso acontecesse, a culpa não seria deles. Seria minha.

Algumas vezes, principalmente quando diziam que não era feminina, que não me vestia ou agia como uma mocinha, chegava a pensar que sorte tinham os garotos por terem nascido homens e não precisarem se preocupar com essas coisas, com a maneira de sentar, de falar, de agir.

Que bom seria ser homem.

Cobravam-me ser sensível, meiga, bonita, mas eu só queria mostrar que era forte, que podia fazer o mesmo que os homens. Jogar bola, fazer contas, jogar videogames, ler romances de terror. Não conseguia enxergar o que me fazia tão diferente deles, afinal, não me sentia diferente. Os outros é que me faziam assim.

Mas um dia a realidade nos sufoca, é impossível escapar. Vieram os anos, as pessoas, outros homens. No trabalho, promoveram meu colega homem porque ele tinha algo a mais que eu. Não podia me queixar, mas quando o fiz, teimosa, ouvi que jamais esperavam tal atitude, logo de mim, uma moça tão delicada. Saí do emprego de cabeça erguida para um próximo, mas, no fundo, o orgulho ainda estava ferido.

Que bom seria ser homem.

Não terminou aí, nunca termina. Vieram mais perguntas, mais julgamentos. Vai casar tão jovem, está grávida? Mulheres não sabem escrever histórias de terror. Use mais vestidos! Quando chegar em casa, vai preparar a comida do marido? Garotas não sabem jogar. Feche as pernas, vagabunda! Você não sabe o que diz, deixa eu explicar direitinho para você entender. Aborto é assassinato! Uma mulher não deveria beber tanto. Torrou o cartão de crédito do marido no shopping? Minha chefe é histérica. Que palavrão feio, uma moça não deveria dizer essas coisas! Se engravidar, vai ser demitida. A casa está uma bagunça, sua porca! Está casada há tantos anos e ainda não teve filhos? Não lavou a louça? Dê-se ao respeito! As mães não educam mais os filhos como antigamente. Esquenta a barriga no fogão, esfria no tanque. A realização da mulher é na maternidade.

Cada dia é uma batalha, e às vezes me canso delas, há ainda tantas pela frente. Sinto-me exaurida, como talvez aquela senhora esteja, a minha sábia amiga que luta todos os dias há quase 90 anos e que em cinco palavrinhas disse tanta coisa. Um pensamento triste, tão cruel e tão verdadeiro. Um sentimento que abate todas as mulheres, pelo menos uma vez na vida, na sua própria guerra.

Tudo seria mais fácil se fôssemos homens.

Mas não somos. Somos mulheres. Teimosas. Orgulhosas. Corajosas. Batalhadoras.

Amanhã será outro dia.

Só nos resta continuar lutando.

Que bom seria ser homem.

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⏰ Última atualização: Mar 08, 2017 ⏰

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