PARTE I

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Era uma madrugada fria do início da primavera, o minuano soprava do lado de fora e entrava pelas frestas do galpão, fazendo as pessoas que ali dormiam tremessem de frio. Fazia pouco menos duas horas que Jabari se deitara. Trabalhara por dezesseis horas mais uma vez, como os outros dias. Seus olhos ardiam de sono e cansaço, assim como os músculos de seu corpo. Cada pedaço de seu ser reclamava para que relaxasse e dormisse.

Ainda teria algumas horas até o próximo turno nas charqueadas e precisava aproveitar aquele momento. Era plena madrugada, todos os escravos dormiam, e o breu era total. Seria sua única chance.

Levantou e saiu, fazendo o mínimo de barulho. Longe de seu acolchoado de lã, o vento soprava mais frio, e o único casaco que trouxera não era o suficiente para lhe aquecer o corpo. Correu no escuro até o estábulo. Não havia ninguém além dos cavalos. Como o período de trabalho no charque era mais árduo no verão — especificamente de novembro a abril — durante o restante do ano era mandado para outras atividades e possuía experiência nas diversas lidas do campo. Inclusive, sabia domar os cavalos e cuidar dos estábulos. Conhecia os melhores e mais dóceis animais da fazenda, os mais ágeis e os mais resistentes. Entre eles escolheu o mais adequado e partiu com ele a um galope rápido, fugindo de seus senhores.

Por todo o percurso tremeu de frio e de medo. A adrenalina em seu sangue era o que o movia. Os músculos estavam tensos pelo nervosismo e pela fadiga, mas, ainda assim, não sentia dor. Não ainda. Sabia que quando parasse e seu corpo esfriasse, experimentaria a pior das dores e da exaustão. Não descansara. Vinha de dias exaustivos do trabalho nas charqueadas. Naquele mesmo dia vira um de seus colegas desmaiar por exaustão. Outro estava distraído pelo pouco tempo de sono e fizera uma das atividades errada: como punição recebera dez chicotadas. Dez chicotadas fora o suficiente para abrir profundas feridas nas costas do negro. E tudo por uma simples distração.

Jabari nem poderia imaginar o que aconteceria se lhe pegassem fugindo. Seria chicoteado até a morte ou até perto disso. Não poderia acontecer. Não iria. Não. De forma alguma. Antes disso, chegaria a Pelotas e encontraria com o Coronel Joaquim Pedro. Se falasse com ele tudo ficaria bem. Ele estaria livre. Sua vida mudaria. Tudo seria diferente.

Seu coração acelerou, o minuano no rosto já rachava seus lábios e deixava sua boca seca. Mas a esperança começava a lhe crescer no peito. Pelotas estava cada vez mais próxima. A tropa de Bento Gonçalves também. Seu novo futuro lhe aguardava a poucos quilômetros.

Só conseguia lembrar da conversa que tivera com Niara na noite anterior, após chegar do turno de trabalho. Foi o gatilho que disparou a sua decisão:

— Dessa vez eu não estou — disse ela, um pequeno sorriso nos lábios carnudos. Conversavam no idioma africano que herdaram de seus pais.

— É um alívio — Jabari encarou os negros olhos de sua amada. Ela refletia preocupação. Esse mês não estava grávida, mas e nos próximos?

Niara trabalhava na casa da fazenda servindo a família dos patrões donos das terras. Ajudava a preparar a comida, a arrumar a casa, a cuidar das crianças e às vezes precisava se deixar ser usada pelo patrão sem resistência. Como era sua escrava, ele considerava possuir direito sobre seu corpo também. Desde cedo fora assim. Acabara com sua virgindade quando tinha apenas 14 anos e seu corpo ainda nem bem estava bem formado. Desde aquela época acostumara-se a usar e abusar dela. Alguns de seus filhos mais velhos faziam o mesmo. Era a sina de todas as escravas. Até mesmo os escravos homens sabiam e não se opunham. Não havia nada que pudessem fazer para mudar a situação. Não sem que fossem mortos no tronco, à chicotadas.

— Se estivesse, você teria coragem? — perguntou ele, dando voz ao tormento de ambos.

— Eu teria que ter — Niara coçou os cabelos grossos presos em um coque volumoso sobre a cabeça. — Não vou trazer mais um ser no mundo pra viver como nós. Você sabe como é. Todos sabemos. A maioria não sobrevive. É melhor que seja assim.

Filhos da LiberdadeOnde histórias criam vida. Descubra agora