Anos se passaram desde que Jabari iniciara sua luta na tropa dos Lanceiros Negros. Já estava adaptado à vida em grupo e já fizera amigos entre eles. Só não se misturava com os soldados brancos. Apesar de todos lutarem pelas mesmas causas, os negros viviam segregados e eram deixados de lado, em condições ainda mais precárias que o restante do exército.
A comida já escassa era ainda mais rara para os lanceiros. Se alimentavam se pudessem e dormiam aonde conseguiam, ao relento, com o minuano soprando entre seus corpos, fazendo-os tremer de frio. Ainda assim, arriscavam dizer que a rotina que tinham era melhor que a vida anterior de escravidão. Mesmo com tantas dificuldades, possuíam algumas poucas escolhas. Possuíam a ilusão da liberdade.
No inverno e em período de batalhas, as coisas eram mais difíceis. O frio complicava a vida. O corpo doía com as baixas temperaturas. Não havia fogo ou lã suficiente para os esquentar. A geada teimava em cair sobre o campo e suas improvisadas barracas. Em um certo ano, um ano que nem barraca tinham, viram um companheiro morrer congelado. Dormiu e nunca mais acordou. Aquilo lhes marcou eternamente. Como poderia um homem morrer de frio?
Quando algum dos lanceiros se feria em uma luta e ficava agonizando, também era um período difícil. Se não morria, menos-mal. Mas se partia dessa pra uma melhor, ficava cada vez mais complicado. Ninguém conseguia dormir à noite ouvindo os gemidos e os delírios do enfermo. Todos sabiam que o fim do companheiro se aproximava e não havia nada que pudesse ser feito. A única coisa que conseguiam pensar era que o próximo poderia ser um deles.
Numa invasão a uma fazenda imperialista, Jabari foi ferido com um tiro no abdômen. Todos os seus companheiros ficaram preocupados. A chance da bala infeccionar e o rapaz morrer eram grandes. Nas primeiras horas do ferimento, o negro sentiu muita dor e tentou visualizar o rosto de Niara para manter-se firme. Precisava ficar vivo, vencer a guerra e voltar pra ela. Mas a dor foi tornando-se insuportável. Não pensava com clareza em mais nada. E logo começou a febre e os delírios. Foram dias de infecção e de agonia. Muitos achavam que Jabari não se salvava. Diziam que a bala havia perfurado suas tripas.
Para a surpresa desses, após um mês o rapaz começou a melhorar pouco a pouco. Com o passar dos dias, foi adquirindo cor, levantando, lembrando-se de Niara e tendo forças para voltar a viver. Logo já estava em cima do cavalo, segurando uma lança e lutando novamente.
E de muitas batalhas participara desde então. Foram quase dez anos de guerra e de lutas. Durante todo esse tempo, pensava em Niara. Ela estaria bem? Já haveria engravidado do patrão ou de outros? Ou eles também haviam ido pra guerra e deixado as escravas em paz? Antes de uma luta sempre visualizava o rosto dela e seus braços quentes, sua voz feminina dizendo que o amava.
No combate de Laguna não foi diferente. Foi um dos embates mais difíceis desde que entrara para a vanguarda dos Lanceiros. Sua tropa recebia ordens do ainda Coronel Davi Canabarro que, juntamente com Giuseppe Garibaldi, montara uma estratégia para atacar Laguna e surpreender os imperiais.
Não foi fácil e em muitos momentos — como o que Garibaldi perdeu a frota que construiu justamente para aquela batalha — Jabari acreditou que seria o fim. O plano de atacarem por terra, enquanto o italiano atacava pelo mar, não era mais viável. Muitas vidas farroupilhas foram perdidas. Mas eles não desistiram. Precisavam de uma saída para o mar se quisessem mesmo manter um novo país e todos os outros portos estavam sobre domínio dos imperialistas. Era tudo ou nada.
E foi com isso em mente que os Lanceiros Negros entraram na batalha como a linha de frente do exército. Jabari deu o melhor de si e viu seus companheiros fazendo o mesmo. Usaram toda a força e violência que possuíam e surpreenderam seus adversários montando cavalos em pelo e sendo mais velozes que o restante do pelotão, feriam os adversários com suas lanças. Porém, não era suficiente. O colete de couro cru que usavam não lhes assegurava proteção necessária e muitos negros foram feridos, dando baixas importantes à tropa.
Jabari vira muitos amigos e colegas falecerem naquele dia. Lutava com o resquício de suas forças e aceitara que nunca mais veria Niara, quando o cenário mudou. A população lagunense se juntou a eles, contra os imperialistas. O contingente de homens republicanos aumentou drasticamente. Eles tinham apoio. Nem tudo estava perdido.
Ganharam a batalha. Davi Canabarro, Giuseppe Garibaldi e Teixeira Nunes ficaram com o êxito da vitória, mas a realidade era que jamais teriam ganho sem os lanceiros negros e sem o auxílio do povo lagunense. Foi o ápice da revolução. Os farrapos tinham um porto, um grande exército, parte do território de Santa Catarina e duas repúblicas.
Porém, a guerra não estava ganha e Porto Alegre ainda estava sitiada. Rio Grande, Pelotas e a Lagoa dos Patos era dos imperialistas e não havia jeito dos republicanos recuperarem suas terras. Precisavam conquistar mais território e essa foi a obrigação dos lanceiros, que mal tiveram descanso e partiram para angariar novas terras catarinenses, enquanto que a nova república Juliana ruía ao comando de Canabarro e Garibaldi, principalmente depois do massacre da Freguesia de Imaruí que se aliou aos imperialistas e foi considerada traidora.
Com tantas lutas, não sobrou tempo nem mesmo para Jabari se preocupar com Niara e com a conquista de Pelotas pelos imperialistas. Entre uma batalha e outra, passava por sua cabeça que a amada poderia estar rodeada de soldados inimigos, sem nenhum escrúpulo, que poderiam fazer o que quisessem com ela, principalmente se soubesse que ela servia a uma família apoiadora dos farrapos. Mas logo as preocupações se esvaiam e ele focava-se em lutar e manter-se vivo. Era o que importava agora. Não havia espaço para o resto. Se pensasse no que Niara poderia estar enfrentando, ele enlouqueceria.
E foi assim que sobreviveu durante aqueles 10 longos anos.
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Filhos da Liberdade
Cerita Pendek"Eu vi batalhas disputadas mas nunca e em nenhuma parte homens mais valentes nem lanceiros mais brilhantes do que os da cavalaria rio-grandense, em cujas fileiras comecei a desprezar o perigo e a combater pela causa sagrada dos povos." (Giuseppe Gar...