Capítulo 3

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Ar.

Faltava ar.

Em meio às areias cinzentas do deserto noturno, um pequeno pedaço de metal apontava para o céu estrelado. Isso era tudo o que se via do triciclo que havia sido engolido pela gigantesca tempestade durante o anoitecer.

Já se passavam das nove horas da noite e não se via mais nenhum resquício do colosso de areia que havia tão violentamente atravessado aquela região, a não ser pela mudança no posicionamento das dunas. Algumas haviam desaparecido, outras, surgido, umas cresceram, outras atrofiaram. A aparência do deserto era a mesma de sempre, solitária, entediante, silenciosa, desértica. O único ponto destoante na paisagem era um pequeno pedaço de metal que, enterrado na areia, apontava para os céus.

Mas ainda faltava ar.

A areia ao redor do pedaço de metal começou a se mover. Ela escorria para os lados como que com vida própria, enquanto uma saliência ganhava tamanho, surgindo do chão. Uma mão emergiu daquele amontoado e rapidamente começou a tatear o entorno, buscando apoio. Algo mais brotou da areia, um cabelo, dois olhos, uma cabeça, a cabeça do menino.

O menino pôs seu rosto para fora e inspirou fortemente, buscando ar. Ofegante, olhou para baixo e começou a tentar livrar o resto de seu corpo da areia, cavando um buraco ao redor de si. Conseguiu, pois, fazê-lo com uma boa dose de esforço. Deitou-se de braços abertos, exausto, na areia e se pôs a observar as estrelas.

Finalmente havia ar.

Um dos locais com a mais bela visão do céu estrelado é de fato o deserto. Sem luzes ou nuvens de grande tamanho - exceto as formadas pelas areias que os ventos de tempestade levantavam - o céu noturno se mostra em sua forma mais pura e completa, revelando todo o panteão de constelações e a abundância de corpos celestes. Mas para o menino tudo aquilo era comum. Era um morador do deserto. Todo dia ia dormir tendo esse mesmo céu sobre sua cabeça e acordava, antes do sol nascer, com o mesmo. Mesmo assim o menino fitava o firmamento. E assim ficou por cerca de cinco minutos, cansado e ao mesmo tempo contemplativo. Não conseguiu impedir que um pequeno sorriso surgisse em seu rosto e transbordava de excitação, como se tivesse acabado de sair de um emocionante parque de diversões.

Ao recuperar-se completamente, levantou-se usando o pedaço de metal como apoio. Examinou o seu redor, correndo os olhos pelo chão. Voltou a se abaixar, tendo que se segurar ainda no metal, por conta da ausência de sua prótese na perna esquerda, e começou a tirar a areia do entorno da barra metálica.

Permaneceu nessa atividade por um bom tempo. Aos poucos a barra de metal revelava fazer parte de outra estrutura, o guidão do triciclo.

Os ventos gélidos da noite se arrastavam pelas terras do deserto e gelavam a pele do menino, que tremia enquanto tentava libertar seu veículo de debaixo da areia. Coberto por seu casaco e segurando no guidão do triciclo, puxava para trás a maquina, que lentamente se arrastava para fora. Os dentes rangiam com a força e o frio. Seu corpo se arrastava pelo chão, sendo empurrado por sua única perna. 

Quando o triciclo e o reboque emergiram, o garoto tombou sobre seu joelho. Olhou para o céu novamente, satisfeito. Encostou a testa no chão. Beijou a areia. Agradeceu.

O garoto não odiava o deserto. Pelo contrário, o amava. Tinha por ele imenso respeito e obediência, como se fosse seu próprio pai.

Levantou-se, com a mão, tirou a poeira do pano que cobria o reboque, onde estava sua arma e o corpo do cervo que havia caçado naquela tarde. Passou a alça da arma sobre o ombro e ajeitou-a. Saltitou até a lateral do triciclo e sentou no banco. Esticando a mão atrás das costas, alcançando a corda do motor e deu a partida. O veículo começou a se mover com certa dificuldade, por conta do peso extra que carregava, com toda a areia e com a recente caça, mas aos poucos ganhou velocidade e passou a cortar com destreza os frios ares daquela noite.

O menino puxou do pescoço o capuz do casaco e com ele cobriu a boca. Meteu a mão dentro do bolso, retirou um par de óculos de aviador e o colocou na cabeça, protegendo os olhos da areia.

De minuto em minuto, devoravam as distâncias. Orientando-se pelas estrelas, para as quais olhava periodicamente, o menino seguia na direção certa. Perseguindo uma estrela, que na ponta de uma constelação que possuía um não muito rebuscado formato de flecha, apontava o norte.

Contornou dunas e cortou planícies, e a noite o seguiu. Um grande morro se aproximava na dianteira. Seu formato brusco e largo barrava o vento, de modo que a areia não se acumulava em sua face sul. Algumas espécies de plantas se incrustavam na superfície do morro, dando à encosta um tom verde arroxeado pela luz do céu noturno.

Na base desse morro, por entre duas largas pedras precipitadas do muro de pedra, um buraco, tampado por um largo trapo de pano, perfurava o pedregulho.

O menino, ao alcançar a parede de pedra, desligou o motor do triciclo. Desmontou do banco assim que o quente motor cessou seus estalos. Foi para a parte traseira saltitando sobre a perna direita e, curvando-se, desparafusou do triciclo, o caixote da caçamba, que continha a caça recém obtida. Ergueu-o e colocou-o no chão.

Arrastou consigo para dentro da caverna o pesado caixote. Ao entrar, levantando com uma das mãos o pano que cobria a entrada do buraco, deixou a caixa em meio ao breu. Não enxergava um palmo à sua frente no interior da caverna. Começou a tatear a parede direita, até que sentiu uma pequena corrente que tilintou. Puxou a corrente para baixo, até que ouviu um estalo metálico.

Aos poucos, lâmpadas se acenderam dentro da caverna, iluminando pilhas e pilhas de sucata amontoada. A caverna, que formava uma gruta, possuía um chão liso e sujo de areia. O pé direito era de cerca de cinco metros e adentrava dez metros no morro. Nas paredes podiam-se ver as diversas rocham que compunham aquele relevo, e nelas estavam pendurados diversos papéis cheios de rabiscos e garranchos indecifráveis.

O menino tateou a pilha de sucata até encontrar uma estaca de ferro que lhe parecesse de tamanho adequado e se apoiou nela, usando-a como bengala.

Saltitou entao para a ponta da gruta circular que estava mais no interior da escavação. Nesse canto, um amontoado desarrumado de grossos livros estava coberto por um lençol azulado. O menino tirou seu único sapato e o posicionou no chão, voltado para a saída da gruta, e se deitou nos livros, cobrindo-se com o lençol. Seu cansaço estava estampado em seus olhos cerrados e músculos enfraquecidos.

Olhava para o teto da gruta antes de dormir. As estalactites que se precipitavam sobre sua cabeça. A velha havia lhe dito que antes existia água naquela região. As chuvas eram tantas que esculpiam essas formas no teto das cavernas.

Mas não havia mais a água, nem a velha.

O homem as levara embora.

Ficou triste então e sentiu um formigamento em sua perna. Esticou o braço procurando onde coçar.

Mas não havia mais perna.

O homem a levara embora.

Adormeceu.

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⏰ Última atualização: Sep 20, 2017 ⏰

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